A aparência física dele engana. Alto, branco, com os cabelos grisalhos, mas se você piscar rápido os fios se tornam loiros. Os olhos são azuis e a barba bem feita. No rosto poucas rugas, um fator que assusta, afinal foram vários anos trabalhando na zona rural de Catalão, cidade que ele nasceu.
Sua voz é serena, devagar, no ritmo de uma pessoa que sabe que a pressa não faz chegar mais rápido. A audição é um pouco falha, é preciso falar moderadamente mais alto e perto dele. As mãos não tremem, as pernas são firmes, e o sorriso é frouxo. Esse é João Fidélis do Nascimento, o mais novo centenário de Goiás.
Vestido de camisa xadrez, usando uma calça de tecido e calçando um tênis azul escuro, João recebeu a equipe do jornal Diário da Manhã para contar um pouco do que viu nesses seus 1.200 meses vividos.
A pergunta clichê, é claro, não poderia faltar, quem aí não quer saber o segredo da longevidade? A ciência vive fazendo estudos e mais estudos para descobrir esse enigma. Recentemente, pesquisadores da Universidade de Edimburgo, na Escócia, conduziram uma longa pesquisa de metanálise sobre os genes associados à longevidade. A partir das informações genéticas de mais de 600.000 pessoas, da Europa, Austrália e América do Norte, eles conseguiram quantificar como os genes e diferentes estilos de vida contribuem para aumentar os anos vividos, e os não vividos.
Sobre os genes de João Fidélis, essa reportagem não tem muito a dizer. Porém se o estilo de vida é um fator que prolonga a idade, esse o catalano sabe muito bem. “Não teve nada de especial na minha vida, aliás, a minha vida foi é grosseira o máximo que você pensar. A alimentação era aquelas de fazenda, regular, na infância a higiene era pouca, bicho de pé tive tantos que nem sei mais a conta”, lembrou o centenário com uma gargalhada.
Talvez ele não tenha percebido, mas suas refeições na fazenda significa que por muitos anos sua alimentação foi longe de agrotóxicos e transgênicos. Já os bichos de pé podem ter proporcionado uma autodefesa do organismo. Ainda é válido ressaltar que, durante a sua infância e juventude, os exercícios físicos fizeram parte da sua rotina, mesmo em forma de trabalho.
O REAL SEGREDO
Só que para João o segredo mesmo da vida está na família. Ele nasceu no dia 21 de abril de 1918, e foi o filho único de Francisco Fidélis do Nascimento e Rita Peres de Figueredo. A sua infância foi marcada com o fim da Primeira Guerra Mundial, seu pai foi um dos convocados para servir o Exército na capital do Estado, naquela época cidade de Goiás.
Seus primeiros anos de criança também foram marcados por uma morte inesperada, aos cinco anos de idade ele perdeu a mãe por conta de um acidente na fazenda. Uma vaca a enfrentou com chifradas e perfurou seu abdômen, na época a Medicina não era avançada e os postos de tratamentos eram longes.
“Depois da morte dela, eu fui criado feito cachorro. Meu pai era muito bruto e ignorante e minha vó materna se tornou minha mãe”, revelou o centenário. Dona Tereza era o nome da senhora que lhe deu carinho e afeto. O bolo raivoso até hoje marca a sua lembrança, para ele não tinha quem fazia comida mais gostosa do que sua avó materna. “Ela era daquelas que se ganhasse um pires de doce de alguém, ela comia metade e a outra metade perdia guardada para mim”, recordou o velho João com uma feição fraterna.
Mesmo órfão de mãe e com um pai exigente, para ele o mistério da longevidade está escrito na Bíblia: “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.” João Fidélis fez questão de ressaltar várias vezes na entrevista que sempre valorizou e respeitou seus pais mesmo depois da morte.
CASAMENTO
Se João teve uma infância vivida na zona rural, sua juventude também não poderia ser diferente. Ele trabalhava com seu pai montado no lombo do cavalo seis dias da semana, mas os domingos eram reservados para o lazer que se resumiam em visitar as fazendas vizinhas. E numa dessas propriedades, exatamente seis quilômetros de distância da sua, morava Odília de Oliveira, a moça que conquistou o coração do rapaz de 21 anos.
O namoro foi de mais ou menos um mês, apenas trocando olhares e quando muito pegando nas pontas dos dedos das mãos da linda jovem. Na verdade o que ele chamou de namoro, hoje é mais conhecido por paquera. “Até que um dia teve um pagode na casa dela e eu fui participar. O povo bebia, comia, dançava e começava a ir embora, menos eu. Amanheci no pagode, e quando já estava pronto para ir embora o pai dela chegou e me chamou para conversar”, disse João Fidélis com um sorriso tímido e olhar distante.
Naquela época e na região de Catalão, segundo ele, eram os pais das moças que pediam os rapazes em casamento. O pedido foi feito, João aceitou, mas ainda faltava conversar com o seu pai, Francisco. As famílias eram vizinhas de fazenda, só que possuíam uma contradição na religião. De um lado evangélicos e do outro católicos.
“Só que, graças a Deus, isso não impediu em nada. Mas eu tive medo, porque naquela época as famílias eram inimigas uma das outras por conta de tanta besteira. Eu casei com a Odília, mas tive que batizar com o padre. No dia do batizado arrumei um padrinho e fui com meu 38 na cintura, o padre ia me batizar por bem ou por mal”, contou o centenário com mais uma gargalhada das algumas que soltou durante a conversa.
Desse matrimônio nasceram seus três filhos, Coraci, Cecílio e Iraci. Hoje já são seis netos e 12 bisnetos. Só que por ironia do destino ou não, João Fidélis perdeu sua esposa há 40 anos.
MEDO DA MORTE
João Fidélis teve muitas perdas na vida, nesta semana ele enterrou um dos seus amigos malungos de Catalão. Contudo, a morte não lhe assusta. Entre prosas e histórias de morte, ele garantiu que quando ela chegar vai enganar a “senhora” para poder viver por mais anos.
SAUDADES
Uma pessoa que já viveu 876.000 horas, além de ser um livro de história em forma humana, também é um baú de saudades. O tempo que as pessoas sentavam nas portas de casa e visitavam os seus vizinhos, amigos e parentes é o que mais faz falta para ele. “Hoje o povo é muito superficial. O povo casa hoje e divorcia amanhã”, lamentou.
TECNOLOGIAS
João Fidélis não é um adepto das novas tecnologias, ele na verdade desconfia e ainda não compreende como é possível estar no curral de uma fazenda e falar com seu neto que mora na França. Da mesma forma ele desacredita que o homem foi para a lua, mas se surpreende com o poder do avião.
“Eu lembro do dia que estava na fazenda e passou o avião do Getúlio Vargas. A gente sabia que era ele porque todo mundo estava comentando na época. Mas a notícia dele só chegou no jornal pra gente com 15 dias de atraso”, comentou.
GOIÁS
Para o centenário, o Estado de Goiás teve duas fases. Uma antes do governador Iris Rezende, em que ele caracterizou como sertão, e outra depois da sua gestão. Ele lembrou que foi o atual prefeito de Goiânia que colocou comunicação em todo o território estadual e que começou a construir as estradas para chegar nas cidades. “Eu vi e conheci Goiás antes e depois dele”, reforçou.
FUTURO
E o amanhã de João Fidélis? Amanhã ele estará celebrando os seus 100 anos de idade junto com sua família. Já o depois de amanhã, aí quem escreve a história é ele. Mas essa reportagem questiona mais, e o seu futuro leitor? Será onde? Relembrando que história? Vivendo em que mundo?