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A reconstrução do monumento ao Trabalhador ainda não saiu do papel

“Afinal, muito já se dis­se que temos memória curta, porque há quem acredite que o passado nada tem a dizer ao presente”. A frase do jor­nalista Pinheiro Sales ilustra bem a falta de comprometimento com a memória coletiva de Goiânia. Militante marxista e preso políti­co durante a ditadura militar, Pi­nheiro conhece como poucos os porões onde soldados do Depar­tamento de Ordem Política e So­cial (Dops) colocavam em prática seu modus operandi cuja tônica principal era a atrocidade. Nesta época, a máxima “Brasil, ame ou deixe-o” estava em pleno vapor e os milicos não pensavam duas ve­zes antes de cometer as maiores barbáries que se possa imaginar.

Construído em 1959 durante o governo estadual de José Feliciano Ferreira e municipal de Jaime Câ­mara, o Monumento aos Trabalha­dores, na antiga Praça Americano do Brasil hoje Praça do Trabalha­dor, atendeu várias reivindicações de sindicalistas que lutavam para que Goiânia contasse com uma homenagem ao sindicalismo. Mas logo no início de 1969 a obra sofreu seu maior revés, e acabou sendo manchada com piche fervido por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O grupo de extrema-direita cobriu inteiramen­te os painéis “A luta dos Trabalha­dores” e “O Mundo do Trabalho”, que faziam alusão aos trabalha­dores de Chicago no episódio que ficou conhecido como Revolta Haymarket. Deste então, as cica­trizes são enormes e incuráveis à memória coletiva goianiense.

Décadas depois, na virada do milênio, houve uma mobilização para brigar pela restauração do mo­numento. Em 2003, durante a ges­tão do ex-prefeito Pedro Wilson (PT), constitui-se um grupo de tra­balho para avaliar a reconstrução do monumento, e viabilizá-la. Mes­mo com um relatório bem construí­do e contendo até o valor orçado – o que em dinheiro de hoje ficaria na casa de R$ 1 milhão -,veio a eleição do prefeito Iris Rezende, que estava em seu primeiro mandato de prefei­to quando o Monumento ao Traba­lhador fora pichado. Foi concebida uma oportunidade ao emedebista, mas a reinauguração do monumen­to seguiu sendo um sonho.

Em junho de 2016, o vereador Paulo da Farmácia (PROS) apresen­tou um projeto de lei em que pedia a reconstrução do Monumento ao Trabalhador. Demolido em 1987, por conta de uma obra que visava ampliar a Avenida Goiás para a re­gião norte da capital, o resumo do projeto dizia que o Executivo muni­cipal “fica autorizado a adotar todos os procedimentos necessários à re­construção do Painel/Monumento da Praça dos Trabalhadores”. Fon­tes ligadas à Secretaria Municipal de Cultural (Secult) e ao Paço Mu­nicipal contaram ao Diário da Ma­nhã que o projeto ainda não foi en­caminhado para sanção do prefeito.

Segundo o vice-presidente da Associação dos Anistiados Políti­cos de Goiás (Anigo), Marcantonio Dela Corte, a reconstrução do Mo­numento tem a função de reparar, e até mesmo, fortalecer a demo­cracia no Brasil. Em reunião com Iris no início de seu terceiro man­dato, o historiador relatou que o prefeito selou um compromisso para reerguer o Monumento ao Trabalhador. “Iris tem um passa­do de serviços prestados a Goiânia que o coloca como o melhor pre­feito que já tivemos e, neste senti­do, esperamos que a promessa de reconstrução do Monumento não seja esquecida”, frisa.

IMPORTÂNCIA

De acordo com o relatório Mo­numento ao Trabalhador: estudos para a reconstrução, que o Diá­rio da Manhã obteve com exclu­sividade, a reconstrução do mo­numento trará para a sociedade goiana elementos para que ela compreenda seu passado. “Sua re­construção terá também um outro significado importante, que é a de­marcação da vontade dos homens de consciência e dos gestores pú­blicos envolvidos neste processo”, diz o texto. Além disso, a recons­trução do monumento será uma forma “eloquente” de demonstrar “a capacidade de nossos arquite­tos, artistas e administradores de criar condições necessárias à res­tauração de uma obra complexa”.

O relatório mostra ainda que a Lei Orgânica do Município de Goiânia, de 1990, fica autorizada a adotar todas as medidas para que o Monumento aos Trabalhadores seja reerguido. Assim, a reconstru­ção torna-se relevante por conta da expressividade do trabalho do ar­quiteto Clóvis Graciano, que pos­sui obras em museus de várias ci­dades do Brasil e do exterior. De acordo com o texto, o monumen­to é tido como uma expressão da sensibilidade humana. “Em fun­ção disso, o Poder Público muni­cipal fica a serviço do que há de mais essencial no ato de reparar, preservar e reconstruir aquilo que a insensibilidade, a insensatez e a intolerância um dia destruíram”.

No entanto, Marcantonio Dela Corte destacou que não há inte­resse para que o monumento vol­te à Praça do Trabalhador. “Tenho a sensação de que o Poder Público não possui interesse em obras re­lacionadas à preservação da me­mória histórica”, afirma. Apesar de o monumento não fazer mais par­te da paisagem arquitetônica da re­gião mais antiga de Goiânia, as reu­niões realizadas ali durante os anos de chumbo permanecem vivas na cabeça de Dela Corte. “A gente se reunia nos lotes vazios abaixo da Estação Ferroviária, clandestina­mente, e olhávamos aquele mo­numento todos os dias. Então, um dia ele amanheceu com os sinais do CCC”, descreve o historiador.

RESISTÊNCIA

Na década de 1950, quando o Monumento aos Trabalhadores foi erguido, o movimento sindical no mundo todo estava ganhando for­ça. Em Goiás, não era diferente. Na região norte do estado, essa foi a dé­cada da vitória dos camponeses de Trombas e Formoso sobre os lati­fundiários. Em Goiânia, por sua vez, o cenário era de resistência, sobre­tudo por parte do movimento es­tudantil, com as revoltas contra o aumento da passagem de ônibus, ingressos de cinema e teatro. No fi­nal da década, os estudantes con­seguiram derrubar o Secretário de Segurança Pública do estado e es­colherem um nome de suas con­fianças para administrar a pasta.

A fundação da Universidade Federal de Goiás (UFG), em 1960, aconteceu com a luta dos estudan­tes contra setores tidos conserva­dores que diziam que uma univer­sidade pública seria um “centro de subversão”. Em meio a este cenário de crescente efervescência políti­ca, os sindicatos passaram a se re­unir para pleitear a construção de um monumento na capital que marcasse a conquista dos direitos civis e trabalhistas. Em estudo pu­blicado em 2016, o cientista políti­co Pedro Célio e o historiador Mar­cantonio Dela Corte disseram que “poucas experiências sociais rela­cionadas à ditadura militar de 1964 em Goiânia ilustram a fragilidade de uma política de memória na cidade com precisão e ênfase re­tidas no episódio do Monumento ao Trabalhador”.

Afinal, muito já se disse que temos memória curta, porque há quem acredite que o passado nada tem a dizer ao presente”

 Reforma trabalhista provocou mudanças em quase 100 pontos da CLT

Assinada em meados de julho do ano passado pelo presidente Michel Temer (MDB), a lei número 13.4687 alterou pelo menos 100 pontos da Consolidação das Leis do Traba­lho (CLT) e mudou as relações entre empregados e empregadores. Um dos pontos que gerou mais discus­são foi a jornada de trabalho inter­mitente de 12 horas seguidas por 36 de folga. Especialistas veem a ‘mo­dernização’ da lei trabalhista com desconfiança, pois elas com o tem­po tenderão a acentuar a precarie­dade do emprego. Em contraparti­da, trabalhadores afirmam que as relações de trabalho foram preju­dicadas com a reforma.

De acordo com o cientista polí­tico Revalino Freitas, o discurso de flexibilizar a legislação trabalhista sempre existiu no Brasil. Embora conste na Constituição Federal de 1988 que o trabalho é um direito de todo cidadão, diz Freitas, ele nunca foi visto desta forma no país. “Não é à toa que quem não aceita um de­terminado tipo de trabalho é mal visto, chamado de “preguiçoso” e “vagabundo””, diz. Segundo o estu­dioso, a escravidão formal acabou, porém o Brasil ainda segue prati­cando formas de trabalho em con­dições sub-humanas.

“O desrespeito ao trabalhador, os constrangimentos no trabalho e a obrigação de aceitar fazer de­terminadas atividades sem recla­mar, é parte da cultura do trabalho escravo no Brasil”, afirma o cientis­ta político, pontuando que o Brasil continua sendo uma Casa Grande. “Quando buscamos na história, va­mos ver que desde o final do Esta­do Novo, a CLT já passou a sofrer pressão do patronato pelo excesso de direitos que garantia aos traba­lhadores. A institucionalização do 13º Salário, apenas para ficar num exemplo, foi alvo de críticas violen­tas dos setores conservadores e do patronato”, exemplifica.

Em função disso, a jornalista Suellem Horácio, 23, relatou que as condições de trabalho são com­plicadas, especialmente para ela que é mulher e tem de conviver com casos de discriminação por parte dos patrões. “Todas as vezes que eu fazia uma entrevista, as pes­soas comentavam sobre o meu ca­belo, dizendo que ele parecia uma peruca”, relata ela, que tem pentea­do black power. “A mulher tem de conviver o tempo inteiro com coi­sas do tipo ‘será que ela sabe o que está fazendo, será que ela sabe o que está falando?”, indaga.

CRISE

“Eu era filho de um pedreiro que não trabalhava há cinco me­ses. Eu não tinha um sobretudo, usava três suéteres, e minha mãe já tinha começado uma série de novenas pelo terno novo que eu iria precisar para a formatura”. Tre­cho do livro 1933 foi um ano ruim, do escritor estadunidense John Fante, o parágrafo descreve com fidelidade o sentimento que pai­rava sobre a sociedade norte-ame­ricana durante a Grande Depres­são, que teve seu início em 1929 com o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Contudo, mesmo es­tando algumas décadas distante, a obra ainda pode ter alguma re­lação com o contexto pelo qual o Brasil passa no momento.

A advogada Isabel Lira, 23, afir­mou que o mercado de trabalho já enfrentava, antes mesmo da refor­ma trabalhista, uma crise generali­zada. De acordo com ela, a Reforma irá apenas assolar mais a condição do trabalhador. “Eu vejo o mercado de trabalho nessa nova situação ju­rídica como um ambiente de insta­bilidade e incerteza, pois a reforma institucionaliza a condição de vul­nerabilidade do trabalhador, que já era uma realidade no mundo dos fa­tos, tendendo para relações de tra­balho frágeis, mão de obra impes­soal e pouco especializada”, diz.

Já o cientista político Revalino Freitas esclareceu que o governo de Michel Temer demonstra fragilida­de em sua essência. “Ele não pas­sa de um títere. Ele começou a ser gestado no mesmo dia do segundo turno da eleição de 2014, logo após a divulgação do resultado”, explica. Para o estudioso, o país conta com uma tradição de não respeitar o resultado do pleito democrático e, portanto, golpes políticos são a gê­nese do Brasil. “Se não há uma re­sistência maior é porque a maioria dos trabalhadores não vê legitimi­dade em nenhum destes partidos que governaram o Brasil nos últi­mos vinte anos. Agora, a conjuntu­ra está favorável a este assalto aos direitos sociais”.

DIA DE LUTA

Para celebrar o Dia do Trabalha­dor, a Central Única dos Trabalha­dores de Goiás (CUT-GO) organi­zam hoje celebração em memória à data. Segundo o presidente da en­tidade, Mauro Rubem, o ato ocorre poucos meses depois de o Michel Temer conseguir aprovar a Refor­ma Trabalhista. “Em todo o país, os trabalhadores levarão às ruas ban­deiras da democracia, do respeito aos direitos e da proteção dos em­pregos, dos salários e das aposenta­dorias. Em Goiânia, não será dife­rente”, destaca Rubem. O sindicato deve aproveitar endossar o coro de “Lula livre” e combater as reformas trabalhistas e previdenciária (Leia mais na capa do DM Revista).

Mais do que um feriado, o Dia do Trabalhador têm suas raízes no final do século XIX na Europa e América. Em 1886, trabalhadores estadunidenses fizeram uma gran­de paralisação no dia 1° de maio para reivindicar melhores condi­ções de trabalho. No ano seguin­te, o movimento se espalhou pelo mundo e trabalhadores de países europeus decidiram paralisar por protesto. Em 1889, operários que estavam reunidos em País, na Fran­ça, estabeleceram que a data se tor­naria uma homenagem aos traba­lhadores que haviam feito greve três anos antes. No final do século, fran­ceses consagraram a data de luta por jornadas até oito horas diárias. O século XX despontou para o fato de que trabalhar mais do que esta carga horária seria inconcebível.

BRASIL

No Brasil, o feriado começou por conta da influência de imigran­tes europeus, que a partir de 1947 resolveram parar o trabalho para reivindicar seus direitos. Em 1924, o então presidente Arthur Bernar­des decretou feriado oficial. Além de ser considerado atualmente um dia de descanso, o 1° de maio é uma data com ações voltadas aos trabalhadores, especialmente arti­culadas por movimentos sociais. Por isso, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil fora anunciada justamente nesta data. Durante bastante tempo, inclusive, o reajuste do salário mínimo acon­tecia no Dia do Trabalhador.

Segundo o cientista político Ian Caetano, operários de diver­sas categorias conseguiram ba­talhar e promover a consolidação da CLT no Brasil. Para ele, o “fenô­meno”Getúlio Vargas é importan­te historicamente, mas “se olhar­mos a fundo é mais consequência e coagulação desta conquista do que propriamente causa desta”. “Se, por um lado, é verdade que foi um ato administrativo corajo­so e inovador, por outro era a ex­pressão de um movimento radical na tessitura social que já desenha­va esta condição”, afirma Caetano. O cientista político ressaltou ain­da que, certamente, as greves no ABC paulista podem ter sido as mais impactantes.

“Não só pelo seu caráter históri­co para o próprio sindicalismo, mas, também, como terreno fértil para originar o maior partido de mas­sas do Brasil e, diz-se consensual­mente, da América Latina: o Parti­do dos Trabalhadores. Endossemos, ou não o partido (eu mesmo tenho várias críticas a este e gabo-me de nunca nele ter votado) é, para o bem e para o mal, um fenômeno político de dimensão única”, destaca o cien­tista político, Ian Caetano.

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