Uma casa aparentemente como qualquer outra no Centro de Goiânia. No muro imponente, o número 75 confirma que aquele é o local procurado. Ali mora Mab Davilla Roberts, de 64 anos, descendente do povo celta e natural de Oliveira, pequeno município do sudoeste de Minas Gerais. De Oliveira até Goiânia, mais de trinta cidades, do Brasil e do mundo, foram cenários da história dessa escritora, que levou a paz a milhares de pessoas através da perspicácia de suas palavras.
Na sala daquela casa estava Mab, sentada em sua cadeira, atrás de uma larga mesa de madeira. Atenta ao computador, rodeada por quadros, esculturas, livros, documentos, medalhas, certificados e diplomas, a mulher se levanta em atenção à visita, mais uma naquela quarta-feira de outono goianiense. Com dificuldades de mobilidade, as marcas pelo corpo indicam que a capital, desde novembro passado, abriga não só uma nova moradora, mas uma história inteira, da qual Goiânia é uma das personagens.
Literata internacional, entre publicações e participações, Mab Roberts tem mais de 80 livros e diversas honrarias recebidas pelos serviços prestados em prol da paz mundial. A escritora mineira também foi peça fundamental para o cessar-fogo em regiões de intenso conflito no Oriente Médio. Atualmente ela é embaixadora do Brasil na Associação Internacional de Poetas e Escritores Hispanos (AIPEH), com reconhecimento internacional, principalmente na Europa e nos Estados Unidos.
De seis da manhã até duas da madrugada, Mab divide seu tempo entre dicas de gastronomia e aulas de idioma para pessoas de todo o País. Filha de mãe poeta, socióloga e escultora e de pai teólogo e fazendeiro, ela nasceu embebida na poesia e na arte. Seus olhos se enchem d’água sempre que a memória de seu companheiro é solicitada, o diplomata norte-americano George Coe Roberts, que faleceu há cinco anos, vítima de infarto. Os olhos marejados são reflexo de uma crise de depressão pela qual passou a mulher nos dois meses seguintes à morte de seu companheiro.
O que hoje é o lar de Mab, antigamente era a escola de inglês de George Roberts. A escritora faz questão de preservar toda a estrutura arquitetônica da casa, em respeito à memória do marido que, além de bancário, era também professor de inglês e não escondia seu encanto pelos brasileiros. Em contraste com a parte externa, o interior da casa chama atenção por suas particularidades. Logo na entrada, uma porta de vidro remonta as características escolares de outrora.
As salas se transformaram em quartos, mesmo sem alteração na estrutura, e as paredes onde se encaixavam lousas, hoje sustentam prateleiras de livros. Embora a escola tenha se tornado uma casa, a produção e partilha de conhecimento permanece intacta sob os tetos daquele edifício. Livros, canetas e cadernos ainda são personagens vivos daquele espaço, no coração de Goiânia. Mab vive sozinha nessa casa, que também é o consultório de uma de suas filhas, que é psicóloga, com espaço para receber os pacientes, além de uma carregada horta em seu quintal, que garante a alimentação orgânica da escritora.
Na lateral do lote, um corredor nos leva para a parte superior, onde Mab tem 18 mil livros encaixotados. Ela está preparando um cômodo no quintal, que vai dividir espaço com a horta, para instaurar uma biblioteca. Além dos livros, há um quarto e um imenso banheiro no andar de cima. Ela utilizava os cômodos para descansar, mas recentemente uma forte chuva rompeu a estrutura do telhado e molhou os móveis. Hoje seu quarto é uma daquelas antigas salas de aula de seu marido.
O destaque internacional de Mab ganhou maiores proporções após a morte de George Roberts. Foi pela busca por novos ares durante um período delicado que ela se tornou uma personalidade mundial. Em 2015 foi convidada para o Congresso Mundial de Escritores. Sem apoio financeiro, ela precisou vender o próprio carro para chegar até as Bahamas, país insular ao norte de Cuba onde seria realizado o evento. Com recursos reduzidos, ela se deparou com uma estrutura grandiosa, nas quais cada representante apresentava a cultura de seu país, com equipes de dança, comidas e vestimentas típicas.
Sozinha, Mab tinha consigo sua história e um flerte de 64 anos com a escrita, o que foi suficiente para provar sua importância para o mundo das letras. “Quero fazer um convite a todos a irem ao Brasil. Tudo lá é grandioso, por isso não pude trazer”. Foi assim que Davilla Roberts começou seu discurso para representantes de 163 países. Além do Brasil, ela falou sobre superação e as inquietações humanas na busca pela felicidade. A participação em Bahamas a levou para outros eventos de notoriedade da comunidade mundial de poetas e escritores na Itália, em Cuba, nos Estados Unidos e na Espanha.
A relação de Mab com a literatura e as artes, começa desde o berço e Goiás é personagem precoce desta história. Aos 12 anos, ela trocou sua cidade natal pelo interior de Goiás, em uma fazenda de seu pai, no município de Anicuns. Ali viveu uma infância atípica. Não brincava como as demais crianças, se dedicando espontaneamente aos estudos e ao canto. Aos 15 anos de idade, quando se casou com George e morava nos EUA, próximo à fronteira com o Canadá, o casal internacional veio passar a lua de mel em Goiânia.
A escritora não esconde sua paixão pela cidade, destacando a sensibilidade da juventude, em contraste com as relações pessoais norte-americanas. Mab engravidou seis vezes em diferentes cidades do mundo, mas fez questão de ter seus filhos em Goiânia. Quando se aposentou como funcionária do Banco do Brasil, em 1996, montou sua casa na capital, mas ainda não se mudou em definitivo e continuou vivendo em Campinas, São Paulo.
George também era funcionário do Banco e, por isso, além de Goiânia, o casal viveu em outras 28 cidades brasileiras, entre elas Conceição do Mato Dentro, Oliveira, Divinópolis e Varginha em Minas Gerais, Anápolis, Brasília e Campinas. Em 1992, Davilla consagrou um de seus maiores feitos na luta pela paz. Diante dos desastrosos resultados que produzia uma dura guerra na Cisjordânia, território muçulmano em área de conflito no Oriente Médio, a escritora tratou de investigar e se inteirar sobre a realidade daquele país, decidindo por enviar uma carta ao governante à época, que ela prefere não identificar.
Embasada nas crenças islâmicas no anjo São Gabriel, segundo principal profeta da religião, ela escreveu. “Você acha que o anjo São Gabriel é o seu anjo? Seu anjo é o Devil. Você deixa um rastro de crianças degoladas, invasão de casas, rouba tudo que eles tem, mata o pai, a mãe, deixa filhos órfãos, mulheres viúvas e maridos sem família. É um rastro de sangue. Isso agrada ao Devil, não ao anjo, que fica à sua distância chorando, esperando você consertar os erros. Você tem prazo de validade, se morrer, não vai entrar nem no julgamento, é um mar de sangue que você construiu. Pense nisso”.
A carta provocou consequências diretas na postura do governante, segundo a escritora, desencadeando uma crise de depressão no chefe de governo, que uma semana depois ordenou a retirada das tropas militares das ruas da Cisjordânia. Essa medida rendeu uma das dezenas de medalhas que acumula a pacifista, recebendo a honraria em 2015, em Porto Rico. No mesmo ano da atuação pela paz no Oriente Médio, Mab sofreu um grave acidente de trânsito.
Na época, Davilla morava em Campinas. Um caminhão colidiu e engavetou vários veículos em uma rodovia e ela estava em um dos carros envolvidos. Mab ficou presa entre as ferragens e perdeu o controle dos músculos do reto. Mesmo precisando utilizar fraldas descartáveis, ela não se intimidou e continuou sua atuação como escritora. Em 1996, outro grave acidente, dessa vez em sua casa, levou Mab a aposentadoria como funcionária do Banco.
Davilla subiu em uma escada para levar uma caixa de som até a parte superior da cobertura em que morava, na cidade de Campinas. A escada cedeu e ela teve uma queda de cerca de quatro metros de altura, com lesões graves nas vértebras e nos punhos, o que lhe deixou cinco anos em uma cadeira de rodas. Ao todo, Mab realizou 21 cirurgias e hoje carrega uma placa de titânio nas costas. Os médicos garantiam que ela não voltaria a andar.
Os anos em que ficou sem o movimento das pernas foram os que mais escreveu, além de manter viva em sua memória seus passos, para que o cérebro não perdesse os comandos do caminhar. Mab decidiu voltar para Goiás, e se mudou para Caldas Novas para realizar sessões de fisioterapia em água quente. Sua persistência ia contra os laudos médicos. Ela pediu demissão do emprego e utilizou o dinheiro da indenização para pagar os processos cirúrgicos para voltar a andar. Hoje, ela não tem sensibilidade nas pernas e os joelhos são pouco firmes, mas a placa de titânio que carrega é responsável pelos passos que ela dá.
Em novembro, quando regressou à Goiânia, vindo dos EUA, Mab sentiu um desconforto durante o vôo. Ao chegar em Goiânia, acionou sua sobrinha, que é fisioterapeuta. Ela recomendou que a tia procurasse um médico com urgência, devido ao alto nível de inchaço das pernas. Em dezembro, foi constatado que a escritora estava com a parte esquerda do coração comprometida. Ela realizou ponte de safena nas duas pernas, um procedimento cirúrgico que usa uma parte da veia safena da perna para desviar sangue da aorta, principal artéria do corpo, que sai do coração, para as veias coronárias, que irrigam o coração.
Mab estava com outra cirurgia agendada para 8 de março, mas contraiu dengue hemorrágica e teve o procedimento suspenso. O corpo marcado pelo tempo é a tradução de uma vida dedicada à uma missão, como diz Davilla. “Minha vida é uma missão e essa missão envolve ajudar outras pessoas”. Atualmente, além de manter a conexão com embaixadores de outros países, ela tem um grupo internacional de escola de culinária, registrado na França, que tem criado saídas para pessoas com problemas financeiros. Uma família do Rio de Janeiro, por exemplo, através das dicas culinárias, montou uma casa de bolos e em pouco tempo já fatura 20 mil reais por mês.
Ela também auxilia na união de casais, no tratamento de jovens dependentes químicos e promove palestras. E assim, uma história que começou no interior de Minas Gerais e percorreu milhares de quilômetros pelo mundo, escreve seus últimos capítulos, que ainda prometem ser longos, ali, em uma das poucas ruas do Centro de Goiânia, capaz de abrigar e sustentar todo o peso de uma história de luta. Ao final, Mab questiona: “Você só não me perguntou uma coisa: qual é o meu hobby. Meu hobby é a pescaria”
Sinto meu prazo de validade aproximando, então minha pressa de fazer alguma coisa é muito grande” Eu retirei feitura da mágoa com a escrita” Você escolhe o lugar em que você quer aposentar e findar sua vida. Eu escolhi Goiânia”