- Governo de Goiás acaba de entregar ao povo Kalunga escritura de transferência de 75,2 mil hectares de glebas devolutas que incluem importantes áreas do território tradicional, após três décadas de levantamentos e discriminação das terras
Os festejos tradicionais de São Sebastião, que reúnem mais de 2,5 mil pessoas na comunidade de Salinas, no Vão do Moleque, às margens do rio Paranã, tiveram uma motivação a mais neste ano. No giro da folia desta semana, seu Gregório Gomes do Santos, 80 anos, levava consigo, além da bagagem do grupo, o orgulho de ser Kalunga e de vivenciar um momento histórico para seu povo: a conquista da terra. Seu Gregório e os outros foliões, lideranças e parentes visitantes fizeram o “arremato” da festa, fincando no centro do acampamento a bandeira do santo, como se demarcassem um tempo novo, de esperança e liberdade.
A pé ou a cavalo, nos vãos das serras, a notícia se espalhou rapidamente, indo até as mais longínquas comunidades, às margens do rio das Almas, do Paranã, do Prata, do Corrente, do Correntinho, do Curriola, do Capivara e de dezenas de outros rios do território Kalunga, o maior quilombo do país. Em cada canto, a notícia ecoou com a força contida em séculos de história e resistência e décadas de protagonismo das lideranças na luta pelo reconhecimento e regularização das terras tradicionais.
No dia 6 de julho, o procurador-geral do Estado, Luiz César Kimura, representando o governador de Goiás, José Eliton, entregou a escritura de Concessão de Direito Real de Uso de 75,2 mil hectares de terras ao presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), Vilmar Souza Costa. A escritura compreende 3.682,5639 hectares da Gleba Devoluta Moleque, 57.343,4438 hectares da Gleba Vão das Almas e 14.207,0000 hectares da Reserva Biológica Serra da Contenda I.
Com essa escritura registrada em cartório, os Kalunga detêm a posse definitiva e documentada das terras que eram de domínio do estado de Goiás. A gleba Moleque e a gleba Vão das Almas, no município de Cavalcante, são originárias da ação discriminatória judicial do município de Cavalcante, Colinas do Sul e Terezina de Goiás, encerrada em março do ano passado.
O Tribunal de Contas, o Tribunal de Justiça e o juiz da Comarca de Cavalcante entregaram à época ao governo de Goiás as matrículas de 22 áreas. Essa discriminatória levou mais de três décadas para ser concluída. A Reserva Biológica da Serra Contenda I é oriunda da discriminatória administrativa, de 1985, e objeto de lei daquele ano de doação da área para a comunidade Kalunga.
Ao fim da ação discriminatória, em 2017, o governador José Eliton declarou que se tratava de um momento histórico, que permitiria avançar, no sentido de levar às comunidades Kalunga a valorização e a dignidade. “Agora eles poderão ter finalmente reconhecida a sua territorialidade”, disse.
Outras três áreas da mesma discriminatória judicial não foram objetos da escritura de concessão de uso entregue recentemente à Associação Quilombo Kalunga porque nelas há presença de posseiros que não são Kalungas. São as glebas Sossego, em Cavalcante, e parte das glebas Diadema e Tereza, ambas no município de Terezina de Goiás. “Seria infringir a lei”, disse o engenheiro agrônomo, Durval Mota, que tem acompanhado a luta do povo Kalunga pela posse da terra. Segundo destacou, primeiro é preciso avaliar as benfeitorias feitas pelos posseiros e indenizá-los.
O governo de Goiás já havia repassado aos Kalunga a escritura de 10 mil hectares em 1985. Por sua vez, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tinha regularizado outros 50 mil hectares dentro do território Kalunga. Somados aos 75,2 mil hectares transferidos agora pelo governo de Goiás, já são 145 mil hectares, ou 55,34% do território Kalunga regularizados. Conforme observou Durval Mota, há vários outros processos em tramitação aguardando recursos federais para que o território fique plenamente na posse dos Kalunga.
“A TERRA É COMO OURO, COMO DIAMANTE”, DIZ LÍDER KALUNGA
Para o presidente da Associação Quilombo Kalunga, Vilmar Souza Costa, 38 anos, “a hora é de celebrar, celebrar e celebrar”. Momento, também, de reafirmar a história, a luta e a resistência dos Kalunga para permanecer no seu território. “Nessa terra que é sagrada e que, pra gente, é como ouro, como diamante”, afirma. Ele lembrou que seus antepassados vieram se esconder e por mais de 300 anos viveram perseguidos por fazendeiros e enfrentando dificuldades.
As conquistas, segundo declarou, vieram com muita luta. “Muitos perderam a vida por essas terras, pelo direito de viver aqui, e até me emociono em pensar que eles não alcançaram esse momento que estamos vivendo hoje; eles viviam escondidos, mas tinham o sonho da liberdade”, disse.
Professor licenciado em Educação no Campo pela Universidade de Brasília (UnB), Vilmar participou da formação das principais entidades representativas das comunidades Kalunga, responsáveis pela mobilização e conscientização política dos quilombolas, na luta pela preservação da sua cultura e pela posse da terra. Ele foi da primeira turma do curso na UNB que já formou mais de 200 jovens Kalunga que hoje trabalham como educadores e em diferentes áreas dentro do território.
“Essa conquista é resultado de um trabalho conjunto do povo e lideranças Kalunga”, disse, reconhecendo, também, a importância do Estado na transferência das áreas. “Isso vem fortalecer a nossa cultura, e com o reconhecimento do governo temos a certeza de que as melhorias serão crescentes. Não vamos voltar para o chicote de novo; isso seria um grande retrocesso para nossa gente”, acentua.
Vilmar Souza observou que o isolamento dos seus antepassados foi importante para a sobrevivência, mas que hoje o povo Kalunga está preparado para a gestão de suas áreas e para o desenvolvimento de suas atividades sem nenhum receio. “Somos fortes porque preservamos a nossa cultura e sabemos a importância que a terra tem para nós. Estamos preparados para gerir o nosso Sítio Histórico e Patrimônio Cultural”, garantiu.
“O governador José Eliton está de parabéns por enxergar a necessidade do nosso povo, reconhecer e valorizar a nossa cultura; isso é mais um passo para nossa autonomia”, acentuou Vilmar. O líder destacou vários outros benefícios que o governo do estado tem levado aos Kalunga, como a construção de pontes na estrada da comunidade Engenho II e a construção de 27 habitações para famílias atingidas pelas enchentes do rio do Prata, no ano passado, além de cheques Moradia e Cheques Reforma para quilombolas em várias regiões do território tradicional Kalunga.
Ele destacou que, no momento de desespero, a presença do governador José Eliton no local das enchentes foi crucial para as famílias, que tiveram dele a garantia de que teriam um lugar seguro para morar. “Ele veio, prometeu e cumpriu”, declarou.
“SEM A TERRA, NÃO SOMOS NADA, NEM PASSARINHO”
Cirilo dos Santos Rosa, 64 anos, olha em volta como se fosse o rio, o ar, a terra e a plantação e tenta expressar o que moveu oito gerações da família na luta e resistência no quilombo. Com a serenidade e a certeza de quem conhece cada pedaço daquele chão, ele diz: “Só tenho a agradecer ao governo que nos deu a escritura, porque, sem a terra, nós não somos nada, nem um passarinho, porque até passarinho, depois de voar, precisa da terra para descansar”.
Cirilo, que nasceu e cresceu no Engenho II, tem 11 filhos e toca uma roça a 9 quilômetros da comunidade, onde cultiva mandioca, abóbora, arroz e tudo o que precisa para a subsistência. Em poucos minutos de conversa, Cirilo fala de aspectos da cultura Kalunga, indo da escolha do barro para a feitura do adobe e das palhas de buriti ou indaiá para a cobertura das casas ao preparo da terra com compostagem para o plantio das hortas. Ao subir a Serra da Ave Maria, ele diz, com orgulho, que lá em cima tem uma grande vereda, e que a GO 241 foi traçada ao lado da antiga estrada curraleira que ficava um pouco mais na borda da serra, após o mirante.
“Eu agradeço ao governador José Eliton que assinou esses documentos da nossa terra, e vamos continuar perturbando ele porque ele vai continuar ajudando os Kalunga”, afirmou Cirilo.
“A GENTE CRIA, PLANTA E COLHE O QUE PRECISA”
Sionílio Paulino da Silva, 50 anos, presidente da Associação Comunitária do Engenho II, enfatizou que a escritura chega como um prêmio para todos os que lutaram pela terra. “Nós somos um povo da terra; a gente sobrevive da terra, a gente cria, a gente planta e a gente colhe o que precisa. A terra é o que temos de mais importante nessa vida”, destacou. Ao agradecer ao governo do estado, Sionílio lembrou que o reconhecimento é importante porque é da terra que o seu povo tira a subsistência. Ele enumerou várias obras na sua comunidade, como as pontes e um bueiro, além de benefícios sociais.
A presidente da Associação Kalunga de Cavalcante, Eriene dos Santos Rosa, 32 anos, falou com entusiasmo da grande conquista que é para seu povo a transferência dessas áreas. “A terra pra gente é vida, é sobrevivência, é alimentação; é a gente ter onde morar, plantar, colher pra nossa subsistência”, disse. “Para nós, é uma conquista muito grande saber que podemos desfrutar da terra sem empecilhos, sem questionamentos”, continuou.
Eriene destacou que, neste momento, a associação mãe, ou a Associação Quilombo Kalunga, trabalha com a comunidade o regimento que irá disciplinar o uso da terra em todo o território Kalunga. “Onde for bom para o plantio, será plantio, onde é atrativo para o turismo, será turismo, onde é para murar, vai murar; e isso tudo está sendo discutido com as comunidades”, afirmou.
“É UM DIREITO, NOSSA LUTA TINHA UM SENTIDO DE SER”
O líder quilombola Jorge Moreira de Oliveira, 50 anos, nascido e criado no Engenho II, oito filhos, declarou que a escritura entregue pelo governo de Goiás aos Kalunga veio “calar a boca” de muita gente. “Com essa escritura, a gente, que é liderança, cala a boca de quem criticava, dizendo que a luta não era verdadeira; mas nós tínhamos a certeza de que a terra sempre foi e é um direito nosso, que nossa luta tinha um sentido de ser”, explicou.
Ao falar da conquista, Jorge Moreira faz “milhões de agradecimentos ao governo, por resolver essa situação para o povo Kalunga, que tem na terra o espaço para sobreviver e preservar a cultura”. Jorge comemorou, destacando que há mais de 300 anos seu povo vivia ali, mas não tinha voz de falar que a terra era sua. “Agora tem”, acentuou. “Dentro do nosso território temos o Cerrado preservado por nós, com muitas riquezas que nossos antepassados souberam cuidar, e nossa pretensão é preservar cada vez mais”, ressaltou.
Jorge Moreira observou que a cachoeira Santa Bárbara, maior atração turística atualmente explorada no Engenho II pertence ao Vão de Almas que foi contemplada com essa escritura. “Agora ela nos pertence e continuará sendo cuidada por nós, nenhum fazendeiro vai mais dizer aqui que é dono de Santa Bárbara”, enfatizou.
Para Jorge, manter a cultura Kalunga é fundamental para o seu povo. “O turismo é importante, o desenvolvimento é importante, mas o que fez de nós donos dessa terra foram as nossas tradições nossa cultura e isso temos que preservar”, afirmou. Jorge acredita que um dos grandes desafios a ser enfrentado, nesse processo, é o de levar a história e a cultura Kalunga para dentro das salas de aula, não só no território, mas em todo o país.
“O KALUNGA VAI TER SUA ROÇA E VAI VIVER FELIZ”
Para a quilombola Florença dos Santos Rosa, 48 anos, a posse das terras é uma grande conquista, principalmente das lideranças que vêm lutando pelo povo Kalunga. “O Kalunga precisa da terra, assim ele não é obrigado a ir para a cidade arranjar trabalho, vai ter sua roça e vai viver feliz”, disse. Por experiência própria, Florença, que aos 11 anos foi mandada para a cidade para a casa de uma família em Cavalcante, para estudar, ela hoje tem orgulho de ter todos os filhos trabalhando e estudando no Engenho II. “Fiz uma promessa de nunca ver um filho sair chorando de casa para buscar melhoria na cidade, e hoje todos estão aqui comigo”, acentuou.
Florença é artesã, tem um ponto de venda de açaí e toca roça para subsistência da família. “Eu sou feliz aqui, e posso dizer que com turismo ou sem turismo a gente vive bem na nossa terra. Só não pode faltar a terra e a chuva, porque nós trabalhamos e temos como viver”, garantiu.
PELA LIBERDADE, ANTEPASSADOS CRUZARAM O MAR
Segundo a líder quilombola, que é professora de ensino médio e fundamental, só no município de Cavalcante, são 24 comunidades Kalunga vivendo às margens do Prata, no Vão de Almas, no Vão do Moleque e no Engenho II. Conforme lembrou, sua avó contava que há duas versões para a origem do nome Kalunga.
Uma delas é que os antepassados, ao deixarem o continente africano, cruzaram o mar na esperança de alcançarem a liberdade, mas acabaram escravizados. E que depois, ao fugirem do trabalho escravo, atravessaram o rio Paranã que, por ser grande, trouxe o sinal de liberdade, por isso, chamaram o quilombo de Kalunga, que na África remete a Deus. A outra versão é que, ao cruzarem o rio Paranã, muitos adoeceram acometidos de febre amarela, e que curaram a doença ao usarem uma planta chamada kalunga.
Para Eriene, duas palavras sintetizam hoje a conquista da terra pelo seu povo: união e resistência. “A terra foi e é a luta maior do Kalunga, e é a partir dela que conseguimos os demais benefícios, como educação e saúde”, destacou. A luta, segundo disse, continua. “Os desafios são grandes, mas hoje o governo não é mais omisso; as coisas estão caminhando bastante ao que era, e graças a esse apoio o povo Kalunga hoje virou referência para outros quilombos”, concluiu.
TERRITÓRIO ABRIGA 7.500 QUILOMBOLAS EM 39 COMUNIDADES
O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga (SHPCK), no norte do estado, compreende 262 mil hectares de áreas preservadas na sua quase totalidade pelos quilombolas que ali vivem por mais de 300 anos em verdadeira sintonia com a terra e tudo o que ela representa. O sítio foi reconhecido pelo Governo de Goiás em 1991 e titulado pela Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, no ano seguinte. Em 2009, o território foi reconhecido por Decreto Presidencial. Nele, vivem cerca de 1.500 famílias, ou 7.500 quilombolas, em 39 regiões denominadas comunidades.
O povo Kalunga viveu mais de 200 anos no completo isolamento e só a partir da década de 1980, no século passado, estabeleceu os primeiros contatos. A antropóloga goiana Mari Baiocchi foi pioneira na pesquisa desse Povo da Terra. Mais recentemente, com o reconhecimento pelo governo do Estado do valor histórico, cultural e humano do povo Kalunga, as comunidades vêm recebendo, também, apoio do governo federal.
Organizações não governamentais, como a norte-americana Critical Ecosystem Partnership Fundation (CEPF – Cerrado), é parceira no projeto de Uso do Geoprocessamento no Manejo daquele território, que vai implementar, ao lado das associações, um censo para aperfeiçoar a gestão ambiental e territorial no Sítio Kalunga. Neste fim de semana, 80 professores e jovens da comunidade estão recebendo capacitação para aplicar questionários em todas as 39 comunidades quilombolas.
TURISMO
O fluxo de turistas ao Engenho II, em período de férias e estiagem, como julho, chega a 350 pessoas por dia. O acesso às cachoeiras é pago à associação comunitária, e os guias, mais de 200, recebem dos próprios turistas R$ 100 por condução às cachoeiras de Santa Bárbara, Capivara e Candaru.
O turismo é uma atividade que fortalece outras atividades das comunidades Kalunga, como o artesanato, as folias, a dança sussa e outras manifestações culturais nas diferentes comunidades. Doces de frutos do cerrado, como os que Ana Aparecida Francisco faz, com baru, jatobá e cagaita, entre outros, e até o exótico doce de leite com mandioca, que ganham espaços em feiras de comunidades tradicionais na região da Chapada dos Veadeiros, também são atrativos e podem ser encontrados em várias comunidades.
As folias, como a de São Sebastião, que teve como último pouso este ano a casa de Eunice Souza Fernandes, reúnem milhares de quilombolas em festejos e rezas. A bisavó de Eunice iniciou a tradição dos festejos de São Sebastião. Tradição que passou para a avó Olegária e para a mãe Justina, que mora no Angico, na mesma comunidade, em Salinas. Tradição que ela e a filha Versilene de Souza prometem nunca deixar morrer. “Tradição a gente ama, é amor aos mais velhos”, disse.
A terra, para nós, é vida, sobrevivência, alimentação” Eriene dos Santos Rosa, presidente da Associação Kalunga de Cavalcante A hora é de celebrar, celebrar e celebrar” Vilmar Souza Costa, presidente da Associação Quilombo Kalunga, que recebeu a escritura Com a escritura, a gente cala a boca de quem criticava dizendo que a luta não era verdadeira” Jorge Moreira de Oliveira, do Engenho II
Sem a terra, não somos nada, nem um passarinho” (Cirilo dos Santos Rosa, do Engenho II)