- José Ramos-Horta e o bispo de Díli, D. Ximenes Belo, receberam Nobel da Paz, pela defesa dos direitos humanos e soberania da Nação, frisa a educadora
- Os 24 anos de ocupação foram sangrentos, 1/3 da população morreu, padres, freiras, crianças, adultos e velhos, queimados vivos enquanto rezavam, denuncia
- Exército da Indonésia cercou cemitério, abriu fogo sobre cortejo fúnebro, com rezas católicas em português e matou 400: Massacre de Santa Cruz, narra a professora
Ocupado pelo Japão Imperial, em 1942, depois invadido por Portugal, 1945, anexado pela Indonésia, 1975, o Timor Leste, país de língua portuguesa, população católica, no sudeste da Ásia, traz uma história com marcas de sangue. Além de feridas não cicatrizadas. Devastado. Em sua infraestrutura e na economia. O País segue, hoje, em um projeto de reconstrução. O programa contou com o auxílio, na área de Educação, para a formação de professores, da pedagoga graduada na PUC [Goiás], mestre em Ciências da Educação e doutora, em Portugal, em Educação, Jaqueline Cunha. Uma mulher feminista. Insubmissa. De cultura humanista. Nascida em Goiânia e sobrinha do velho membro da ‘Ala dos Autênticos do MDB’, Fernando Cunha. A última ocupação do Timor Leste durou 24 anos, relata. De 1975 até 1999, informa. Em 1996, José Ramos-Horta e o bispo de Díli, D. Ximenes Belo, receberam o Nobel da Paz, narra, emocionada. Pela defesa dos direitos humanos e da independência de Timor-Leste, registra a funcionária das redes municipal e estadual de ensino, em Goiânia e Goiás. Sob a hegemonia política e militar da Indonésia, atrocidadesforamcometidas, denuncia, em tom de indignação. Com violações sexuais de mulheres e crianças, aponta, em quase choro. Durante o tempo que passei no Timor, ouvi tristes relatos vividos pelos timorenses de crianças abandonadas, desabafa, com lágrimas nos olhos. Na esperança de conseguirem sobreviver sozinhos nas matas, explica. Igrejas foram trancafiadas, com padres, freiras, crianças, adultos e velhos, para serem queimados, ainda vivos, enquanto rezavam, acusa Jacqueline Cunha. Casas e prédios públicos acabaram incendiados, atira. Tempos sombrios da contemporaneidade.
Xanana Gusmão foi preso, submetido à tortura, julgado e condenado à prisão perpétua pelo governo indonésio Jacqueline Cunha, consultora da ONU
Diário da Manhã–Como é a história contemporânea colonial do Timor Leste ?
Jacqueline Cunha – O Timor-Leste é um dos países mais novos do mundo. Localizado no sudeste da Ásia. Colônia portuguesa desde o início do século XVI. Até o dia 28 de novembro de 1975. Com a proclamação unilateral da Independência de Timor-Leste. Pela Fretilin. O Japão Imperial ocupou Timor Leste entre 1942 e 1945. Portugal voltou a ser autoridade colonial. Após a rendição japonesa da Segunda Guerra Mundial.
DM–Quando houve a invasão da Indonésia?
Jacqueline Cunha–Após nove dias da independência de Portugal, em 1975. A Indonésia invade o país. Sob o pretexto de proteger os seus cidadãos. Em território Timorense. Em julho de 1976, o Timor-Leste foi incorporado como província da Indonésia. A invasão recebeu o apoio tácito do governo norte-americano e australiano. Os dois viam a Fretilin como uma organização de orientação marxista.
DM–Quantos anos de colonização?
Jacqueline Cunha – A ocupação do Timor-Leste durou 24 anos, de 1975 até 1999. Em 1996, José Ramos-Horta e o bispo de Díli, D. Ximenes Belo, receberam o Nobel da Paz. Pela defesa dos direitos humanos e da independência de Timor-Leste. Em 30 de agosto de 1999 foi realizado um referendo. A população do Timor Leste rejeitou a autonomia proposta pela Indonésia. Ela escolhe, assim, a sua independência formal.
DM–Violações de direitos humanos ocorreram?
Jacqueline Cunha – Os 24 anos de ocupação foram sangrentos. Cerca de 1/3 da população do país morreu. Na guerra da resistência timorense. Em combates contra o exército indonésio. Pela libertação do Timor-Leste. Após a ocupação do território pela Indonésia, a Resistência Timorense consolidou-se progressivamente. Inicialmente, sob a liderança da Fretilin. A resistência foi organizada de duas maneiras: a Frente Clandestina internamente e a Frente Diplomática, internacional, cujo grande expoente é José Ramos Horta. Sob a liderança de Xanana Gusmão se implementou uma política para unificação e fortalecimento das estruturas da Resistência. Em 1992, Xanana Gusmão foi preso, submetido à tortura, julgado e condenado à prisão perpétua pelo governo indonésio. Foi-lhe negado o direito a se defender. Ele passou sete anos na prisão. Mesmo distante, liderou a resistência. Até à independência. Do Timor-Leste.
DM–Como?
Jacqueline Cunha – Atrocidades foram cometidas. Violações sexuais de mulheres e crianças. Durante o tempo que passei no Timor, ouvi tristes relatos vividos pelos timorenses de crianças abandonadas. Na esperança de conseguirem sobreviver sozinhos nas matas. Igrejas foram trancafiadas. Com padres, freiras, crianças, adultos e velhos. Para serem queimadas ainda vivas, enquanto rezavam. Casas e prédios públicos foram incendiados. Uma vez perguntei a Fernando La Sama, primeiro ministro do Timor Leste, o motivo de timorenses não entrarem no mar, tão belo e com águas quentes. Ele respondeu que se lembravam das vezes em que as águas ficaram vermelhas, com o sangue de seus irmãos. O drama vivido pelo povo do Timor Leste ficou mundialmente conhecido com o chamado Massacre de Santa Cruz.
O que foi o Massacre de Santa Cruz?
Jacqueline Cunha – No ano de 1991, as tropas indonésias localizaram um grupo de membros da resistência em uma igreja, em Díli. Sebastião Gomes, um apoiante da independência de Timor Leste, foi retirado da Igreja e abatido pela tropa indonésia. A 12 de novembro do mesmo ano, mais de duas mil pessoas marcharam desde a igreja onde se celebrou uma missa em memória de Sebastião Gomes até ao cemitério de Santa Cruz, onde está enterrado, para lhe prestar homenagem. O exército indonésio cercou o cemitério e abriu fogo sobre a população, que rezava em português. Nesse massacre foram mortos 400 pessoas. A localização de muitos corpos continua a ser desconhecida. O massacre de Santa Cruz foi filmado pelo repórter australiano, que conseguiu fugir e transmitir as imagens da tragédia vivida pelos timorenses, e levou o mundo a conhecer o que tinha acontecido em Díli. Os crimes foram condenados internacionalmente e chamaram atenção do mundo para a violação dos Direitos Humanos no território timorense. As imagens do Massacre de Santa Cruz despertaram protestos no mundo. Pela primeira vez também a Internet foi utilizada em massa na divulgação de campanhas pró Timor, exigindo a rápida intervenção da ONU, para cessar os assassinatos.
DM–Como ficou a soberania do País e a sua língua, o Português?
Jacqueline Cunha – A primeira proibição foi o uso do português, que tornou-se a língua oficial da resistência. O Tétum, que era o idioma de origem, foi desencorajado pelo Governo pró-indonésio, que realizou violenta censura à imprensa. A Indonésia obrigou os timorenses e adotarem o Bahasa, como idioma oficial. Desde então, qualquer pessoa que pronunciasse um simples “Bom dia” poderia ser presa, torturada, violentada e até mesmo assassinada, pois seria considerada da resistência.
DM–Quando ocorreu a independência e libertação da Indonésia?
Jacqueline Cunha–A desocupação se deu em 18 de Setembro de 1999, e contou uma força militar internacional das Nações Unidas, composta por 8 mil homens, de diversos países incluindo brasileiros. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello foi o interventor da missão da força de paz, para comandar o processo de transição e na reconstrução do país. No ano de 2001, foram realizadas eleições para a Assembleia Constituinte que elaborou a atual Constituição de Timor-Leste. Xanana Gusmão obteve uma vitória retumbante, quando foi eleito como primeiro presidente do Timor-Leste. Em 20 de maio de 2002 foi devolvida a soberania ao país, passando este dia a ser assinalado como Dia da Restauração da Independência.
DM–O Timor Leste é, hoje, um País em reconstrução?
Jacqueline Cunha – Quando ocorreu o referendo, os indonésios transformaram o Timor Leste em um país em chamas. Eles queimaram os prédios públicos, comerciais, as casas em que viviam e as casas dos timorenses. A população do Timor Leste fugiu para refugiar-se nas montanhas. Mas tiveram que voltar para as cidades: os indonésios colocaram fogo nas matas. Assim, o Timor Leste não é apenas um país em reconstrução. Mais do que isso, é um país ressurgindo, dos gritos, das lágrimas, do sangue e das chamas.
DM–Quais os números de sua economia, indicadores sociais e culturais, população, extensão territorial, continente, região?
Jacqueline Cunha – O Timor Leste está localizado no sudoeste Asiático, possui fronteira terrestre com a Indonésia e marítima ao sul com a Austrália. Com uma área de 15.007 Km2, menor do que o Estado de Sergipe. O país está subdividido em 13 distritos, 67 postos administrativos, que são divididos em 442 sucos (uma aldeia). A população do país é de cerca de 1.261.072, com uma densidade de 75,3 hab./ km², sendo que 27% vivem na zona urbana. De acordo com o censo de 2010, 96,9% da população é católica, com comunidades minoritárias de protestantes e muçulmanos. Verifica-se que o animismo tem uma presença
muito forte e é praticado por todas as populações. O Timor-Leste tem uma renda média inferior à da economia mundial, sendo que 37,4% da população do país vive abaixo da linha de pobreza, o que significa viver com menos de 1,25 dólar americano por dia (moeda oficial). Cerca de 50% da população é analfabeta. O país é classificado no 128º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O Timor-Leste tem uma economia que costumava depender de exportações de commodities, como café, petróleo, mármore e sândalo. A economia é dependente dos gastos públicos e, em menor medida, da assistência de doadores internacionais. O desenvolvimento do setor privado tem ficado aquém devido à escassez de capital humano, fraqueza no setor de infraestrutura, um sistema jurídico incompleto e um ambiente regulatório ineficiente. Depois do petróleo, o segundo maior produto de exportação é o café, que gera cerca de 10 milhões de dólares ao ano para o país. De acordo com os dados recolhidos no censo de 2010, 87,7% da população urbana e 18,9% das famílias rurais têm energia elétrica, para uma média geral de 36,7%. O setor agrícola emprega 80% da população ativa. Em 2009, cerca de 67 mil famílias cultivaram café no Timor-Leste, com uma grande proporção delas vivendo em situação de extrema pobreza. Atualmente, as margens brutas são cerca de 120 dólares por hectare, gerando uma renda de de 3,70 dólares por dia de trabalho.
DM–Quais as referências políticas do Timor Leste?
Jacqueline Cunha – Em janeiro de 2018, o presidente do Timor Leste, Francisco “Lu Olo” Guterres, anunciou a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições para resolver o bloqueio politico, que o país enfrenta desde as eleições do ano passado. A decisão foi tomada diante da incapacidade de o governo de aprovar o orçamento no Parl a mento, onde se encontra em minoria. A Fretilin, partido que começou como movimento de resistência à ocupação da Indonésia, obteve 23, das 65 cadeiras do Parlamento, sendo a força mais votada nas últimas eleições. O segundo partido mais votado foi da Reconstrução do Timor Leste (CNRT), comandado hoje pelo histórico líder guerrilheiro Xanana Gusmão, com 22 cadeiras, e que até as eleições governou como força majoritária, em coalizão com a Fretilin.
DM–Qual a língua, hoje?
Jacqueline Cunha – O Timor Leste é o único país independente na Ásia de língua oficial portuguesa. O segundo idioma oficial é o Tétum. No entanto, existem mais 31 dialetos, falados nas aldeias e considerados como línguas nativas. Mas utilizam como língua comercial o Inglês e Bahasa Indonésio.
DM–Como foi a sua experiencia como consultora da ONU?
Jacqueline Cunha – Em 1960, a Colômbia vivia uma onda de violência. Guerrilhas. Com uma proporção mais acirrada nas zonas rurais. O que deixou a educação rural em um estado de extremo abandono. Nesse contexto, surgiu na Colômbia os ideais do Modelo Escuela Nueva. Com o intuito de fortalecer e valorizar as escolas, as relações sociais, melhorar a auto-estima dos alunos e desenvolver valores democráticos e solidários. Uma avaliação realizada como parte inte-grante do Primeiro Estudo Internacional Comparativo, organizado pela Unesco [1998], mostrou que as escolas rurais, em sua maioria unitárias, que operavam com o Modelo Escuela Nueva, superaram tanto as escolas públicas quanto as privadas do setor urbano. Segundo Roger Hart [2003], as investigações realizadas por intermédio da UNICEF levaram-no a concluir que o Modelo Escuela Nueva tem a melhor proposta entre as escolas do mundo para se construir um meio para o desenvolvimento participativo, autêntico e sustentável das comunidades. Diversas avaliações positivas como estas motivaram a UNESCO, por meio do UNICEF, a buscar o apoio da Fundación Escuela Nueva, colombiana, responsável pela difusão do Modelo Escola Nova em diversos países, entre eles, o Brasil. Para ajudar na reconstrução do processo educacional do Timor Leste. Entretanto, eles precisavam de uma pessoa que conhecesse profundamente a metodologia e que falasse português. Como fui responsável pela implantação do Programa Escola Ativa no Estado de Goiás, e nos anos que estive à frente da coordenação estadual, o Programa ficou em primeiro lugar de desempenho no Brasil. A presidente da Fundação, Vicky Colbert, juntamente com o responsável pela UNICEF, no Timor Leste, convidaram-me para coordenar a implantação do projeto. Aceitei o desafio de contribuir para a reconstrução do processo educacional daquele país, organizando a equipe, preparando material didático e ministrando formação para os formadores de professores. Tive a certeza de ter deixado a minha contribuição naquele país. Pouco antes de meu retorno ao Brasil, ouvi do coordenador do Centro de Formação de Professores, que estavam reformulando tudo. Ele disse que haviam estudado diversos pensadores como Paulo Freire e Vigotsky. Mas eu lhes havia mostrado como colocar em prática essas teorias. No ano passado, tive o orgulho de participar de um júri de doutorado em Portugal, em que o doutorando afirmou ter seguido os meus passos, pois havia participado de minhas formações no Timor Leste.
37,4% da população do país vive abaixo da linha de pobreza, o que significa sobreviver com menos de 1,25 dólar por dia Jacqueline Cunha, consultora da ONU Timor Leste é o único país independente na Ásia de língua oficial portuguesa Jacqueline Cunha, consultora da ONU
SERVIÇO
Nome completo: Jacqueline Cunha
Formação: Doutorado em Educação e Mestrado em Ciências, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Especialista em Métodos e Técnicas de Ensino; Planejamento Educacional e Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas. Graduada em Pedagogia pela PUC–Goiás.
Cargos que ocupa: Professora da rede estadual de Goiás e da rede municipal de Goiânia. Investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento – CeiEd – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia – Portugal.
Livros lançados: Entre o sonho e a esperança: A escola ativa no Brasil.
Intelectuais que fazem a sua cabeça: Abílio Amiguinho, Adolf Ferrière, António Teodoro, António Nóvoa Boaventura Santos, Mia Couto, Moacir Gadotti, Pierre Bourdieu, Jean Piaget, John Dewey, José Eustáquio Romão, Michel Foucault, Paulo Freire, Rubem Alves, Rui Canário, Stephen Ball, Vygotsky, entre outros