- Num país onde 50 mil estupros acontecem anualmente, e tal número pode ser ainda maior de acordo com estudos, o respeito à política de legalização do aborto já vigente ainda não é cumprido
- Estudos e especialistas afirmam que o aborto nunca deixará de existir, e, graças à clandestinidade, não é possível garantir segurança às mulheres que recorrem ao procedimento
Os números são espantosos: por ano, acredita-se que quase um milhão de abortos ilegais sejam realizados no Brasil. Apenas em 2014, 33 mulheres foram presas por terem infringido a lei que proíbe a prática, pelo menos um quarto delas ao serem denunciadas por médicos. Entretanto, tal ato fere o Código de Ética da Medicina, segundo o qual é vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão” e que afirma que, “na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a cada dois dias uma mulher brasileira morre vítima do aborto ilegal.
Mesmo assim, o tema é tabu para a maioria da população e a questão está cercada de estigmas religiosos, transitando na clandestinidade, à parte dos grandes debates políticos. “O aborto é algo comum na vida reprodutiva das brasileiras. No entanto, a legislação penal as ameaça com penas de prisão que raramente são cumpridas. Se essa lei fosse aplicada, haveria muitas mulheres na cadeia. Elas encontram subterfúgios para se esquivarem desta lei, mas isso não diminui a seriedade da situação, que gira em torno de uma grande hipocrisia”, afirma a antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Debora Diniz, coordenadora da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), publicada em 2010.
CENÁRIO MUNDIAL
No último dia 18 de dezembro, o presidente moçambicano Armando Guebuza aprovou o novo Código Penal do país, que legaliza o aborto. A nova lei chega como uma medida de saúde pública para diminuir os altos índices de mortalidade materna, e substitui a antiga legislação, que datava do final do século XIX. “Não é uma questão de lei, mas de consciência”, disse João Nunes, da Conferência Episcopal de Moçambique, órgão da Igreja Católica. “Nós preferimos trabalhar na sensibilização de nossa comunidade a não recorrer ao aborto, a escolher a vida”.
A mudança chegou depois de uma década de luta de organizações de saúde reprodutiva, que defendiam que as mulheres não precisavam mais recorrer às clínicas clandestinas. Segundo estas instituições, o aborto responde por 11% das mortes maternas na nação africana. De acordo com o Conselho Federal de Medicina do Brasil, que desde 2013 defende a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, a prática clandestina é a quinta causa de morte materna no país.
Entretanto, não é preciso atravessar o Atlântico para falar de mudanças recentes na legislação a respeito do aborto. Em 2012, o Uruguai também legalizou o procedimento, mais uma vez em resposta a manifestações da população. Um balanço oficial publicado pelo governo uruguaio em fevereiro trouxe dados mais do que animadores: nenhuma morte foi registrada dentre os 6.676 abortos seguros realizados em um ano da nova lei.
Para a ex-senadora e atual presidente da Frente Ampla, Mónica Xavier, os resultados da nova Lei de Interrupção da Gravidez são satisfatórios e o número de abortos neste primeiro ano de aplicação da lei não é alarmante, já que não havia registros oficiais até então. “Quando promovíamos a criação de normas legais que regulassem a interrupção da gravidez com algumas condições, entendíamos que haveria, no longo prazo, uma diminuição dos abortos que não seria registrada no início, mas sim com o tempo”, explica.
A descriminalização vai além do Código Penal, incluindo ações de saúde, como a compra de equipamentos e medicamentos, campanha de conscientização e, principalmente, acompanhamento psicológico. Os resultados oficiais também demonstram que 6,3% das mulheres desistiram da ideia de abortar após realizar as consultas com as equipes multidisciplinares. Tal número sugere que a maioria das gestantes chega aos centros de saúde já com uma decisão tomada.
NOSSO LUGAR
A legislação brasileira contempla três hipóteses que justificam a prática de aborto por meios legais: uma gravidez que ponha em risco a vida da mãe, que seja consequência de um estupro ou na qual o feto apresente anomalias incompatíveis com a vida, como a anencefalia. Porém, na prática, as coisas não são tão preto no branco como pode parecer.
Outro estudo, encabeçado por Debora Diniz e publicado no início do segundo semestre deste ano, mostra que muitas das vítimas de estupro que vão aos hospitais públicos para solicitar um aborto legal encontram inúmeros obstáculos por parte da equipe médica para que “sejam reconhecidas como verdadeiras vítimas”. A desinformação e a influência de dogmas religiosos também fazem com que profissionais da saúde não orientem as vítimas de violência sexual sobre a possibilidade de realizar o aborto legal, feito gratuitamente na rede pública de saúde brasileira.
De acordo com um índice divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do SUS de 2011, naquele ano 7% dos casos de estupro resultaram em gravidez. A porcentagem parece pequena, mas quando colocada na ponta do lápis, revela o número absurdo de mulheres que enfrentam esta situação no país. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2017 (última apuração) aponta que 49.497 casos de estupro foram registrados no Brasil em 2016.
A situação fica ainda pior porque, segundo estatísticas internacionais, apenas 35% dos estupros são registrados. Com isso, estima-se que o Brasil possa ter tido no ano passado o absurdo número de 143 mil estupros. A pesquisa do Ipea estima que a situação pode ser ainda pior. A partir das respostas do Sistema de Indicadores de Percepção Social, que continha algumas questões sobre violência sexual, o instituto estima que 0,26% da população brasileira sofra violência sexual a cada ano, o que representa 527 mil tentativas de estupro ou estupros consumados no país.
Apesar de não ser um crime praticado exclusivamente contra mulheres, as vítimas do sexo feminino são a esmagadora maioria. Os dados do Ipea apontam que 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, e mais da metade tinha menos de 13 anos de idade. Ao levar tudo isso em consideração, é possível estimar que 8.858 casos de estupro resultaram em gravidez em 2013. No mesmo ano (até novembro), segundo a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, foram realizados 1.400 abortos legais na rede pública de saúde brasileira.
A lei 12.845, sancionada em agosto de 2013 pela presidente Dilma Rousseff, determina que haja atendimento “emergencial, integral e multidisciplinar” em qualquer hospital do SUS, público ou conveniado, nos casos de violência sexual e se a mulher desejar abortar. Segundo o Ministério da Saúde, há 65 centros de referência do SUS em 26 estados que podem realizar os procedimentos de aborto legal, mas esta relação de estabelecimentos não é divulgada pelo órgão. A justificativa seria “preservar a integridade e a segurança das mulheres e dos próprios profissionais de saúde atuantes nessas unidades”.
“Desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil”, escreve o médico cancerologista Drauzio Varella em seu site. “Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele. Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente”.
Segundo ele, a questão do aborto está mal posta. “Não é verdade que alguns sejam a favor e outros contrários a ele. Todos são contra esse tipo de solução, principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente por não enxergarem alternativa. É lógico que o ideal seria instruí-las para jamais engravidarem sem desejá-lo, mas a natureza humana é mais complexa: até médicas ginecologistas ficam grávidas sem querer”.
“Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente”, conclui Varella.