O legado de Cora Coralina
Diário da Manhã
Publicado em 28 de setembro de 2021 às 13:47 | Atualizado há 4 anos
Ana Lins do Guimarães Peixoto quebrou a vontade dos pais assim que nasceu: eles queriam que a menina fosse um filho varão. Desde então, Aninha parece ter vindo para o mundo com a finalidade de romper padrões impostos às mulheres. Aos 14, quando começou a produzir seus primeiros escritos, contrariou duas tradições, a da primazia da escrita de punho masculino e a de que nessa época, início do século 20, a literatura estava voltada para a poesia. Mas é nesse contexto que lança a “Tragédia da Roça”.
Ana Lins é, na verdade, a poeta Cora Coralina. Se Cora lutava contra uma estrutura patriarcal que tolhia a sensibilidade literária, sua amiga Leodegária de Jesus – mulher negra numa sociedade que havia abolido a escravidão há pouco – publicava o primeiro livro de poemas escrito não escrito por homens em Goiás, o hoje clássico “Coroa de Lírios” (1906). Nesse período, Cora havia sido humilhada pela própria família. Ela retrucava dizendo-lhes que um primo era o responsável pelos textos que escrevia.
As duas, apesar da estrutura conservadora que lhes tentavam aniquilar, tinham uma relação de proximidade. Junto com Leodegária, Cora não só colaborou como ajudou a dirigir o jornal “A Rosa”, em 1907. Quatro anos depois, decidiu sair de Goiás acompanhada de um homem casado e, ao que tudo indica, grávida de sua primeira filha. “Durante os 45 anos que esteve fora de Goiás, Cora Coralina deu provas de sua força e determinação em seguir quebrando os padrões que insistiam em contramarcar a sua natureza revolucionária”, diz a professora Ebe Maria de Lima Siqueira ao DM.
Essa história, de uma vida quebrando pedra e plantando flores, é que inspirou o nascimento da Associação Mulheres Coralinas, criada em 2016, como resultado de uma política pública idealizada pela Prefeitura de Goiás no ano de 2014 com o nome “Projeto Mulheres Coralinas”. Foi rápido, apenas dois anos, mas o suficiente para capacitar pelo menos 150 mulheres nas áreas do artesanato e gastronomia. O eixo, a que Ebe, secretária- -executiva da instituição define como “transversal”, sempre teve como meta a leitura da obra e vida de Cora Coralina – fonte de inspiração ao coletivo.
Assim que o projeto terminou, o executivo local cedeu uma sala no Mercado Municipal para que 71 mulheres associadas comercializassem suas peças. “O legado de Cora foi e continua sendo a nossa maior fonte de inspiração, porque ela foi uma mulher vanguardista, que soube quebrar barreiras e traçar, ela própria, o seu destino”, afirma a secretária-executiva. E foi desse jeito, honrando a memória da escritora mais importante da literatura goiana, que a Associação Mulheres Coralinas se ergueu.
Desde os primeiros passos, o mote era o empoderamento das mulheres, com iniciativas que combatessem a violência. “O empoderamento de Cora foi forjado pela palavra poética, que hoje é alicerce para a nossa casa. E a associação tem a alegria de ter na senhora Vicência Brêtas Tahan, filha de Cora, uma de nossas mais importantes incentivadoras. Ela, em um gesto de generosidade, cedeu para a associação o direito de comercializar peças com a poesia de Cora”, relata Ebe Maria.
POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO
Ao longo de quase três anos de trabalho com o Ministério Público do Trabalho (MP T-GO), a Associação sempre manifestou a vontade de ampliar suas possibilidades de atuação. Em agosto de 2020, o procurador chefe do MPT, Tiago Ranieri de Oliveira, aprovou o projeto de construção da sede, que está em andamento. O equipamento, informa Ebe Maria, contará com três ateliês, sendo de gastronomia, cerâmica e encadernação de livros, além de bordado e confecção de bonecas.
Também terá um auditório para 100 pessoas, que já foi entregue no último dia 18 de setembro. “O restante da obra tem previsão de ser entregue à comunidade das Coralinas e demais mulheres da cidade em dezembro, quando a obra estará pronta e todas as pessoas vacinadas”, adianta Ebe. Ter um espaço construído de forma adequada, diz, para desempenha as atividades de produção tornou-se o fio de esperança em dias melhores para o pós pandemia.
“Muitas vivenciaram a experiência de construir um muro de pedra e o calçamento de uma rua interna que levará o nome da companheira Conceição Rodrigues, uma Coralina que faleceu no meio da pandemia e não pode ser velada como merecia”, conta a professora, que é uma das autoras do projeto da Associação, em 2013. Os espaços da casa também foram nomeados com nomes de mulheres importantes para a comunidade, como Leodegária de Jesus, Nádia Köller, Maria da Gruta, Vicência Brêtas Than, Alice Gonlçalves Noronha.
A construção conta com o apoio da Prefeitura de Goiás, do Instituto Biapó, do engenheiro Herm. E, bem, ter um espaço que mantém o foco na literatura como um direito humano é mais do que essencial, é sem dúvida fundamental para o empoderamento das mulheres: a arte da palavra é uma das mais eficazes ferramentas para a conquista da cidadania e da emancipação dos seres humanos. Foi pela força da arte, por exemplo, que Cora conseguiu elaborar suas dores e se tornou uma pessoa autônoma, e ainda hoje continua sendo fundamental para a liberdade feminina.
Nesse sentido, além de fazermos leituras coletivas e rodas de conversa a partir de textos literários, mantemos um grupo de 15 vocalizadoras que se dedicam a ler e estudar a poesia para vocalizá-la em público”, diz Ebe Maria de Lima Siqueira. Esse trabalho, é importante ressaltar, é feito como projeto de extensão da Universidade Estadual de Goiás, coordenado por Ebe desde o ano de 2015.