o Paulo, Raimundo Fagner e Renato Teixeira brincam com a pronúncia da palavra “porque”, que abre uma das estrofes de “Rastros da Paixão”. Trata-se de uma das oito músicas inéditas que os dois compuseram para o álbum “Naturezas”, o primeiro que fazem juntos, com lançamento previsto para março de 2022.
Fagner é de Orós, no sertão cearense. Teixeira, de Santos, onde morou até os 2 anos, mas foi criado em Taubaté, no interior de São Paulo, onde começou a fazer música. Portanto, é natural que Teixeira puxe a pronúncia do erre. Longe de qualquer bairrismo, o momento de descontração - acompanhado pelo Estadão no dia 9 - revela uma amizade de longa data, que começou no lugar em que agora eles colocam as vozes nas canções que selam essa parceria.
O álbum “Naturezas”, que Fagner e Teixeira gravam juntos, celebra uma amizade que já soma quase 50 anos. E mais: traz uma série de incríveis coincidências que envolvem o estúdio onde a produção está sendo feita.
Nos anos 1970 e 1980, Teixeira morou com a família na casa onde agora funciona a produtora Kuarup. E foi nela que, em 1977, compôs “Romaria”, canção sertaneja, ou melhor, caipira, que ele entregou à cantora Elis Regina e virou um dos maiores êxitos de sua carreira.
No cômodo em que o estúdio está instalado, e que recebeu o nome de Renato Teixeira depois que o dono da produtora, Alcides Ferreira, soube desse fato, o compositor tinha também um pequeno espaço de música, com um gravador de rolo, uma coleção de discos de 78 rotações e um laboratório para revelar fotografias.
Foi nele que, em 1972, ele recebeu Fagner, após a indicação de um amigo em comum. O cearense trazia debaixo do braço a fita do que seria o seu primeiro LP da carreira, o hoje clássico “Manera Fru Fru, Manera”, produzido por Roberto Menescal, com arranjos de Luís Carlos Ramos e Ivan Lins.
Nesse disco, há canções como “Mucuripe” e “Moto I”, ambas em parceria com o conterrâneo Belchior, outro que estava em busca de um lugar ao sol do Sul do País, e “Canteiros”, feita a partir de poema de Cecília Meireles. Entre as participações especiais, a cantora Nara Leão, o percussionista Naná Vasconcelos e o baixista americano Bruce Henry. Uma turma de peso.
“Nossa geração, quando fazia algo, tinha certeza de que era bom. Minha lembrança era de estar ouvindo algo muito surpreendente”, diz Renato, sobre aquele dia. “Eu gravei o disco no Rio, mas vim a São Paulo para uma apresentação na TV Cultura. A gravadora estava esperando o momento certo de lançá-lo, pois eu ainda não era conhecido”, completa Fagner.
Para exemplificar o que fala sobre seus conterrâneos, Teixeira volta ainda mais tempo. Em 1967, quando participou do 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, com a canção Dadá Maria, cantada pela então iniciante Gal Gosta em parceria com Silvio César.
Em um dos intervalos dos ensaios, foi até o bar ao lado do Teatro Record, em São Paulo, e viu um sujeito com “cara de soldado do Exército”. “Eu tinha servido no Exército e o vi lá. Era um peixe fora d’água. Perguntei se ele era soldado. Ele respondeu: não, eu era sargento, mas acabei de dar baixa. Era o Martinho da Vila. E aí cantava aqueles sambas maravilhosos. Foi o mesmo impacto de quando ouvi Fagner e Belchior depois. Algo estranho e diferente”, afirma.
Letras e melodias
Teixeira se deixou guiar pelas melodias de Fagner. “O cara é o melodista de Mucuripe, o que mais posso dizer? Sempre fui ligado na melodia e por ela eu identifico as palavras. Nas letras, há um pouco de reflexão social, filosófica e poética. Eu não vou muito pelo ‘eu te amo, quero você, vou morrer por você’. Prefiro fazer algo mais complexo", conta. "Renato é rápido”, diz Fagner.
Na faixa “Arte e Poesia”, a reflexão passa pela constatação de novos tempos. “Pois tudo muda com o passar do tempo. Tudo vai, não tente ir atrás”, diz a letra. A reportagem questiona, então, se eles não sentem falta de serem gravados por outros intérpretes, como no passado.
“Hoje, nós somos os grandes”, observa Teixeira. “Esse disco está muito bonito. Tem história. O mercado precisava de algo assim. E não é um disco regional. Nossa música continua sendo paulista e nordestina, aí estão nossas naturezas. Mas é uma música popular nacional, que sempre foi grande.”
Entre as oito inéditas de “Naturezas”, a única em que há outros parceiros é “Eu Só Quero Ser Feliz”, na qual constam os nomes de Antônio Adolfo e Fausto Nilo.
Para amarrar ainda mais os laços, a capa foi entregue a Elifas Andreato, responsável por ilustrar discos de Martinho, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Toquinho e Vinicius, Paulinho da Viola, entre outros. Nela, os perfis de Fagner e Teixeira aparecem em meio a uma colorida representação da natureza.