O cantor sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, mal sabia a encrenca que estava produzindo no mês passado ao transformar em comício o palco onde se apresentava em uma cidade do Mato Grosso. Na ocasião, ele se mostrou indignado com uma tatuagem íntima da cantora Anitta e aproveitou para criticar a suposta gula de artistas dependentes da Lei Rouanet para sobreviver. Anitta nunca precisou do mecanismo, que aliás é legítimo, mas a confusão entre a calça e as partes íntimas estava armada. A dupla tinha acabado de receber um cachê bem gordo da prefeitura que a contratara.
Esse “detalhe” saiu do campo da especulação sobre a inteligência e o cinismo alheios e virou caso de polícia. Os trincos nos telhados de vidro expuseram uma multidão de sertanejos que também recebem recursos volumosos de prefeituras para se apresentar em pequenas cidades do país.
A prática é comum e não engloba só sertanejos, mas o auê fez um país inteiro parar para pensar se era justo que as gestões municipais gastassem tanto dinheiro em entretenimento em vez de priorizar as suas carências na educação e na saúde. Em alguns casos, como o do cantor Gusttavo Lima, o cachê superava R$ 1 milhão.
Na onda da comoção, o Ministério Público de diversas praças lançou as lupas sobre o fenômeno. Vieram dali algumas descobertas muito interessantes. Por exemplo, parte dos cachê de artistas famosos era paga com dinheiro das chamadas emendas pix. Isso significa que recursos do orçamento da União são enviados às localidades por meio de emendas parlamentares como um cheque em branco.
As apurações neste momento estão naquela peneira em que é preciso separar o que é imoral e o que é ilegal.
Só no Mato Grosso os promotores descobriram que as prefeituras já gastaram pelo menos 16,6 milhões de reais em 2022 com contratação de shows. O número foi levantado pela Folha de S.Paulo e representa mais do que o triplo do que o estado inteiro captou com a tão surrada Rouanet.
Seria imprudente dizer que tanto dinheiro está bancando mordomias e também alinhamento político –embora seja curioso o número de artistas bolsonaristas dispostos a criticar nos outros aquilo que eles também praticam.
Mas se a discussão do momento servir para levar, além de música, mais transparência e cuidado com o dinheiro público para os rincões do país, os tiro no próprio pé de Zé Neto já valeram o ricochete.
Limites de cachês
Em alguns lugares, a Justiça já determinou um limite de cachês pagos com verba pública para estado e município. Foi o que aconteceu em Alagoas após pedido do Ministério Público. Na cidade de Viçosa (AL) um show do cantor Wesley Safadão precisou ser cancelado. Seu cachê era de R$ 600 mil –e ultrapassada e muito o teto determinado pela Justiça, de R$ 50 mil para eventos estaduais e R$ 20 mil, para municipais.
É provável que a “CPI dos Sertanejos”, como informalmente ficou conhecida a devassa, gere protestos por parte de artistas, gestores e até do público, que pelo valor certamente terá de se acostumar com apresentações do coral da escola, e não mais dos ídolos sertanejos.
E pensar que tudo começou com uma crítica de Zé Neto a uma tatuagem íntima. Como a própria Anitta comentou, em tom de ironia, em suas redes, nunca uma simples tatuagem fez tanto pelo país como agora.
36 cidades brasileiras têm shows investigados
Desde que Zé Neto, da dupla com Cristiano, criticou artistas que usam a Lei Rouanet e ironizou a tatuagem no "tororó" de Anitta, diversos shows com altos cachês pagos por prefeituras passaram a ser investigados pelo Ministério Público. Na ocasião, em 13 de maio deste ano, a dupla sertaneja fazia um show contratado com dinheiro da prefeitura de Sorriso, no Mato Grosso.
De lá até aqui, pelo menos 36 cidades estão com investigações abertas por promover shows, festivais ou festas com a presença de artistas conhecidos nacionalmente e alto cachê. Esse movimento tem sido chamado de "CPI do Sertanejo”.
O nome mais citado nos contratos investigados é o do cantor Gusttavo Lima. Com o cachê mais alto do alto, que pode ultrapassar R$ 1 milhão, o cantor sertanejo teve problemas em pelo menos cinco apresentações nos estados de Roraima, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Ceará.
“Eu nunca me beneficiei de dinheiro público ou empréstimo. A minha vida foi sempre trabalhar, fiz quase 300 shows em 2019. Somos uma equipe gigantesca de colaboradores, que nos ajudam a subir sempre mais um degrau. Não compactuo com uso de dinheiro público, tenho meus impostos em dia”, afirmou, em vídeo, Gusttavo Lima.
Em seguida, o nome de Wesley Safadão aparece em quatro shows investigados e Xand Avião, em três. Bruno e Marrone, Simone e Simaria, Ávine Vinny e Nattanzinho também aparecem em contratos que estão na mira da "CPI do Sertanejo".
Mas vale destacar que os artistas não são investigados, mas sim as prefeituras que os contratam por valores considerados desproporcionais a sua própria receita e tamanho. Vale ponderar também que uma lei criada em 1993 permite que artistas reconhecidos pela crítica ou público possam ser contratados sem licitação.
Billboard repercute escândalo iniciado por ‘tororó’ de Anitta
Uma dais mais importantes publicações voltadas ao mercado fonográfico do mundo, a revista americana Billboard repercutiu a "CPI do Sertanejo", iniciada com a polêmica sobre a tatuagem no ânus de Anitta.
Ainda que não tenha usado a expressão que celebrizou o caso nas redes sociais, a reportagem da revista resgatou a origem das revelações sobre o recebimento de dinheiro público de prefeituras por parte de artistas sertanejos como Gusttavo Lima e Zé Neto —que desencadeou o processo com críticas tanto à cantora quanto à Lei Rouanet num show em Mato Grosso.
Como desdobramento das revelações, o Minist´rio Público iniciou investigações sobre mais de 30 cidades que teriam contratado shows com verbas públicas de modo irregular, como no caso do município mineiro de Conceição do Mato Dentro, que contrataria o cantor Gusttavo Lima por um cachê de R$ 1,2 milhão com dinheiro tirado de áreas como ambiente, infraestrutura, saúde e educação.
Além de Lima, shows de artistas como Xand Avião, Ávine Vinny e Nattanzinho e Wesley Safadão estão sob investigação do Ministério Público do Ceará. Em Mato Grosso, prefeituras gastaram R$ 16,6 milhões com shows de artistas populares, muitos dos quais são conhecidos por criticarem a Lei de Incentivo à Cultura.
A revista afirma ainda que a Lei Rouanet, em vigor desde 1991, "ajuda a patrocinar projetos como festivais de música, produção de turnês e gravações de discos, concedendo incentivos fiscais a financiadores privados".