Nada como um jogo sobre as relações sociais para refletir as feridas abertas e os contrastes da sociedade. Assim o BBB 23 tem se tornado palco para discussões sobre um dos tipos mais profundos de preconceito: o racismo estrutural. Claro que há um avanço, pois, pela primeira vez os negros são maioria na casa. Mas, mesmo assim, as estruturas do racismo mostram que estão bem vivas na casa em um recorte minimalista do que acontece no mundo real.
A sister Sarah Aline, por exemplo, tem percebido a manifestação do racismo estrutural em diversas situações do jogo. Em uma delas, após uma dinâmica, notou que o jogador negro Ricardo Alface foi chamado de termos como: “reativo”, “grosseiro” e “raivoso” e desabafou:
"Eu fico pensando muito aqui, nas reações do game. E acho que entram nessa parte do [racismo] estrutural. Eu estou mais engolindo do que tentando encarar que isso é realmente tão latente quanto é. Eu acho que é mais pela estrutura do jogo, mas é uma coisa que tem me deixado muito incomodada, principalmente na visualização da agressividade quanto às pessoas pretas", explicou Aline para Gabriel.
Outras situações de racismo ocorreram na casa. Uma delas com o jogador que foi eliminado mas voltou na repescagem, Fred Nicácio. Em uma das cenas aparecem os ex-participantes Cristian, Gustavo e Key dizendo coisas, como: "estou cagado de medo", depois de terem visto o médico, que é candomblecista, rezar.
Apesar de ter sido um dos selecionados pelo público na repescagem, Fred Nicácio tem sofrido ataques nas redes sociais. A equipe do médico declarou que está reunindo todas as provas para prosseguir com processos contra perfis racistas.
"Já contamos com um banco de mais de mil prints catalogados com os nomes de usuários. E contaremos com o apoio da Justiça e das plataformas em busca dos responsáveis covardes que se escondem atrás de uma tela", informou a equipe do brother em nota.
A sister Sarah Aline, tem alertado os participantes sobre situações de racismo estrutural.
O que é
Se no BBB já existem casos o suficientes de racismo, na sociedade eles acontecem a toda hora. Seja com gestos sutis ou discriminações descaradas, a dor de passar a vida convivendo com o racismo é até difícil de descrever. Porém, o escritor Wesley Barbosa sabe se expressar desde cedo pelo dom da escrita.
Ele escreve desde criança mas estreou em 2016 com o livro de contos “O Diabo na Mesa dos Fundos”. Desde então, lançou “Parágrafos Fúnebres” (2020) e o romance “Viela Ensanguentada” (2022). Porém, até hoje, quando chega em uma livraria tem a sensação de que não é bem vindo por receber “olhares de reprovação”.
“Estes espaços não foram feitos para nos acolher. Eu falo sobre os olhares de uma maneira meio paranoica, porque é dessa maneira que o racismo estrutural age na sociedade. Você está em lugar, mas alguma coisa na atmosfera daquele ambiente diz que você não é bem vindo ali. Se eu, que sou um autor preto e vindo da periferia sinto isso no lugar de onde mais gosto de estar, imagine no meio literário. Sobre ser escritor cito aqui o poeta Giovani Baffô: -Você Já sofreu preconceito no meio literário? -Eu nunca frequentei o meio literário”, desabafa.
A forma que vende livros é nas ruas de mão em mão. Nestes momentos o preconceito também nunca ficou de fora. Ele conta que já chegaram a pedir o seu RG para provar ser o autor do próprio livro. “Racismo é uma doença que afeta as pessoas ignorantes. Eu não tenho nenhum problema com pessoas brancas, mas algumas dessas pessoas simplesmente não suportam ver um preto de cabeça erguida. Não me curvo a represália de nenhum branco. A minha escrita também é um antídoto contra a doença do racismo. Brancos, leiam livros de pessoas pretas!”, sugere.
Best seller
Acabar com o preconceito vivido por Wesley Barbosa e tantos outros na sociedade é urgente, porém suas causas são remotas e ainda é conveniente a certos grupos. No livro “Pequeno Manual Antiracista”, de Djamila Ribeiro, ela explica que falar de racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural em que é preciso trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravdão e racismo mapeando suas consequências.
“Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda história a população branca ao passo que a negra tratada como mercadoria não teve acesso a direitos básicos e distribuição de riquezas”, diz em um trecho da publicação.
Tal obra, é um marco na discussão do racismo e um best seller. Por sua relevância, foi adotado no currículo de um colégio católico de Niterói, na região Metropolitana do Rio de Janeiro, mas até este livro sofreu preconceito.Isso porque, alguns pais questionaram a inclusão da leitura. Porém, a direção manteve a obra na grade.
Desde 2003, o ensino de história e cultura afro-brasileiras é obrigatório em escolas públicas e privadas. Cinco anos depois, a legislação passou a incluir também na obrigatoriedade o ensino de cultura e história indígenas. Desde então, todas as escolas têm que reformular os currículos e incluir os temas.
Casos de racismo em Goiás são frequentes
Não obstante, casos de racismo invadem os noticiários de Goiás. A história mais recente aconteceu em Valparaíso de Goiás, no Entorno do Distrito Federal.Após denúncias de cometer racismo, homofobia, assédio moral e crimes contra a honra, uma diretora do Colégio Estadual Almirante Tamandaré, foi afastada de suas funções pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc). A polícia está investigando o caso e ouvindo as vítimas. Vítimas contaram à políca que foram chamadas de 'negra imunda' e 'viado nojento' pela ex-diretora.
No final do ano passado, durante um jogo da Copa Goiás Sub-20. O goleiro Alecxander, do Horizonte, denunciou que foi chamado de ‘macaco’ por um torcedor do Vianópolis, o time adversário. O agressor fugiu sem ser identificado.
“População negra é a maioria e deve ter maior representatividade política”
A fase é da historiadora e antropóloga ligada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás Yordanna Lara Rêgo. Em bate-papo esclarecedor, ela explica as facetas do racismo estrutural, como se manifesta na sociedade e soluções. Confira.
DM - Qual a melhor forma de explicar o que é o racismo estrutural?
Yordanna Lara Rêgo - O racismo ser estrutural, significa que ele é naturalizado nas instâncias da sociedade. Ou seja, nas instituições, na cultura e nas relações cotidianas. O racismo é estrutural, por ser parte da base do sistema de governabilidade que vivemos no ocidente. O racismo que vivenciamos no Brasil, foi criado no Colonialismo, sistema que ordenou a invasão do país há mais de 500 anos, que se estabelece a partir da questão racial na escravização dos povos africanos e indígenas e da questão patriarcal, pois sua representação do poder é masculino. Que significa estabelecer hierarquia dentro da humanidade, sendo o referencial os povos europeus brancos e cristãos, com o privilégio masculino. Primeiro chancelado pela Igreja, depois pela ciência eugenista, pelo judiciário e agora, pela Cultura. Atravessando toda a sociedade no formato institucional, ambiental e das relações.
DM - Como pode o racismo se manifesta na sociedade?
YL - Ele pode ser observado na sociedade pelo não acesso das negritudes e indígenas aos postos e cargos políticos e de decisão. Nas taxas de escolaridade, de desemprego, locais de moradia e de violência. Que são consequencias de leis pós abolicionistas que proibiram o acesso dos negros e indígenas a Educação, a propriedade e a circulação na cidade. Abolição essa, que sabemos só ter acontecido no papel diante da imposição da Inglaterra. E que por esse motivo, gerou a expressão que ainda hoje é usada no Brasil, quando se feito algo sem efeito real. A expressão “para inglês ver”.
DM - As discussões atuais do BBB, por exemplo, tem colaborado para que as pessoas entendam o problema?
YL - Sim, discussões promovidas devido aos acontecimentos no BBB, nos mostram isso quando denunciam tratamento e reconhecimento social diferentes em relação aos participantes negros e brancos. Deixando claramente exposto, por exemplo, que nas questões morais são dois pesos e duas medidas. O corpo branco é sempre privilegiado e protegido. O racismo religioso, o racismo recreativo e, sua versão mais feroz, o racismo generificado, ou seja, o racismo que incide sobre as mulheres negras também são expostos ali. E o debate a respeito destas questões, levam a reflexão.
DM- Quais ações são necessárias para enfraquecer este racismo entranhado na sociedade?
YL - Somente refletir não vai gerar mudanças que podem impactar no racismo estrutural. É preciso que entendamos que a população negra é a maioria da população brasileira, logo deve ter maior representatividade política, mais acesso a cargos de decisão de impacto coletivo, assim como uma séria e comprometida mudança na Educação e nas demais instituições com foco no judiciário. E o mesmo na direção dos povos indígenas, que não são maioria, porém são os originários da terra.