Apesar de melhoras, pobreza insiste em subir na Argentina
Diário da Manhã
Publicado em 20 de outubro de 2015 às 06:07 | Atualizado há 10 anosBUENOS AIRES – No ano 2000, quando a Argentina mergulhava numa das crises econômicas e sociais mais graves de sua História, levando a pobreza a engolir mais de 50% da população, Emiliana, uma moradora da favela 21-24 no bairro portenho de Barracas — uma das mais frequentadas pelo Papa Francisco quando era arcebispo de Buenos Aires — decidiu transformar sua casa em refeitório popular e começou alimentando 120 pessoas. Hoje, aos 62 anos, ela dedica a vida a ajudar 350 vizinhos, que não têm recursos para satisfazer suas necessidades básicas. Como todas as favelas portenhas, a 21-24 cresceu de forma expressiva nos últimos anos, realidade que contrasta com os indicadores oficiais de pobreza (cuja divulgação foi suspensa pelo governo em abril), apresentados com orgulho pela presidente Cristina Kirchner em foros internacionais. Para a chefe de Estado, a taxa de pobreza é inferior a 5%, superando até mesmo países como a Alemanha. Já a Universidade Católica (UCA), que realiza a medição considerada mais confiável pelos economistas locais, assegura que o indicador é de 28,7%. Alheia ao debate estatístico, Emiliana diz que a situação melhorou, mas ainda há muito a ser feito pelos pobres.
— Tenho sete filhos e todos trabalham e estudam, mas precisamos de muita ajuda do Estado que não chega. Eu pediria ao próximo presidente que reconheça nosso esforço e nos dê um socorro — disse ela, que esteve várias vezes com Francisco. — Cheguei a lhe perguntar até quando existiria tanta pobreza. A resposta foi que estávamos no caminho certo.
Na favela de Barracas, onde continuam trabalhando ativamente os padres enviados pelo ex-cardeal Jorge Mario Bergoglio, o clima é de bastante apatia em relação à campanha presidencial. Nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), realizadas em 9 de agosto, o candidato mais votado foi o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli. Para os moradores, no entanto, o voto está dividido e não existe favoritismo.
— Hoje a maioria das pessoas têm trabalho, a coisa está melhor, mas ainda existem desafios. O grande problema que deveria ser encarado pelo próximo governo é a crise habitacional — disse o padre Juan Isasmendi, discípulo de Francisco.
Para ele, a redução da pobreza não deve ser considerado mérito exclusivo do kirchnerismo.
— O primeiro a se preocupar e se ocupar foi Bergoglio, e assim nasceu um acordo social entre vários setores que permitiu as melhoras sociais — defende Isasmendi.
População de favelas na capital quase dobra
Para os moradores da 21-24, o Papa é a grande referência. Alguns, como Emiliana, também são seguidores de Cristina e destacam a implementação de programas sociais como a Ajuda Universal por Filho (AUF), que permitiu a muitos argentinos passar da indigência à pobreza. Mas nem Scioli nem o prefeito portenho, Mauricio Macri, principal candidato da oposição, despertam grande entusiasmo entre os mais humildes.
Basta caminhar pelas ruas internas para perceber que a pobreza continua se espalhando. Não existem dados oficiais, mas segundo estimativas de ONG locais, atualmente 300 mil pessoas vivem nas favelas da cidade. Há cinco anos, o número de habitantes nelas era de 168 mil.
— Ninguém discute a redução da pobreza. Mas este é um longo caminho e estamos apenas começando — assegurou o padre, sem querer polemizar com as declarações de Cristina e os indicadores do Indec (o IBGE local), acusado de manipular as estatísticas oficiais desde que foi alvo de uma intervenção estatal, em 2007. — Os pobres hoje sofrem pela exclusão social, querem ser reconhecidos, ter a dignidade de uma casa própria.
O déficit habitacional é, de fato, um dos grandes problemas que enfrenta o país. Na Grande Buenos Aires, a situação é grave. A ONG Madre Terra, entre outras, ajuda setores humildes de vários distritos, incluindo o de Moreno, a organizar as dezenas de favelas que surgiram nos últimos anos. Numa delas, o número de famílias passou de 35, em 1996, a mais de cinco mil. Todos os moradores, como acontece também nas favelas portenhas, carecem de um título de propriedade das terras que ocupam.
— Cheguei aqui depois de ter sido desalojada de outro bairro, em 2009. Desde então, o crescimento de nosso bairro foi impressionante — disse Maria Melgarejo, de 37 anos, que cria sozinha as quatro filhas.
Como muitos argentinos, Maria consegue atender as necessidades básicas graças à AUF, com a ajuda de uma pensão do ex-marido.
— Agora estamos um pouco melhor, temos casa, mas não escritura, esse seria nosso sonho, além de um hospital e uma escola — afirmou ela, que diz que os programas sociais do kirchnerismo são essenciais. — A AUF é o que mantém muitas mulheres sozinhas, que não podem trabalhar porque não têm com quem deixar seus filhos.
Esse também é o caso de Norma Carabajal, de 48 anos, que tem sete filhos e recebe a ajuda do governo por quatro deles. Os filhos mais velhos trabalham e ajudam um pouco em casa, mas os subsídios estatais são fundamentais para que Norma, que é viúva, possa sustentar a família.
— Precisamos manter essa ajuda, sem ela não podemos viver. Também seria muito importante ter um documento que diga que somos donos de nossas casas — pediu.
Recentemente, vários representantes da Igreja argentina alertaram sobre a “tremenda realidade” da pobreza e a desnutrição infantil que assolam um grande setor da população. A morte de crianças e jovens desnutridos é noticiada com frequência pela mídia local e provoca preocupação entre autoridades eclesiásticas e políticas. No Norte da Argentina, a situação é dramática, o que contrasta com os indicadores do Indec e as declarações de Cristina.
— Lamentavelmente, a pobreza estrutural não cedeu. Mesmo numa década bastante próspera em recursos, podemos dar fé de que a pobreza estrutural continua — declarou o bispo da cidade de Oberá, província de Misiones, monsenhor Damián Bitar.