Benzedeiras resistem ao tempo
Diário da Manhã
Publicado em 7 de janeiro de 2017 às 01:27 | Atualizado há 4 meses
As benzedeiras estão longe de ser uma espécie em extinção. Sua atividade ainda é muito requisitada em pleno século XXI, mesmo em uma cidade cosmopolita como Goiânia, e as orações se destinam aos mesmos incômodos seculares relatados pela literatura médica e da cultura popular: quebranto, cobreiro, espinhela caída, mau-olhado, vento-virado, sol na cabeça, inveja e outros males sem classificação científica, mas que sobrevivem na crendice popular, são os mais procurados para tratamento com essas rezadeiras.
Oriundas de um tempo em que a medicina ainda engatinhava, se valia de suposições e pouca comprovação científica e aliava a fé à sensibilidade demonstrada por uns poucos para ministrar uma oração e aplacar uma dor, as benzedeiras pertencem a uma linhagem de quem sabe unir a fé aos desejos humanos de saúde e felicidade. Em pontos espalhados pela cidade é possível encontrar pessoas que benzem contra esses males e que não se furtam a atender de forma abnegada e altruísta quem lhes procure.
No Jardim América fica uma octagenária senhora que desde menina sabia de seu poder de sensibilidade e mediunidade. Eurípia Venância de Matos nasceu em Pedregulho, Estado de São Paulo, e veio ainda menina para Goiás com os pais. Em Leopoldo de Bulhões, cidade da Região da Estrada de Ferro, onde a família foi viver, ela teve as primeiras manifestações de que tinha uma sensibilidade maior que os outros de seu convívio e que depois seria revelada como mediunidade. “Eu via vultos, tinha desmaios e sofria dores de cabeça. Com muita insistência de um médium lá da cidade, meu pai me levou em Palmelo e outros médiuns daquela cidade disseram que eu precisava passar por um tratamento lá”, explica.
O tratamento espiritual que ela recebeu ajudou-a a revelar sua sensibilidade e mediunidade que ninguém sabia que estava adormecida na menina. A família era de tradição católica, mas mesmo assim não se opôs ao caminho espiritual que a menina-moça aceitava como sendo uma atribuição para distribuir o bem através da oração e das bênçãos impostas pelas mãos.
A hoje atenciosa senhora de 88 anos, de pouca instrução formal, mas de uma inteligência brilhante que impressiona pela facilidade de falar e expor lembranças e considerações, atende pessoas de variadas idades para benzer das mais diversas afecções de origem espiritual, psicológica e até mesmo física. Mãe de quatro filhos (dois vivos), nove netos e 12 bisnetos, dona Eurípia é, aos 88 anos, uma referência em benzeção, procurada por gente de toda Goiânia.
“Deus me dá essa força para benzer e ajudar as pessoas e eu vou distribuindo o bem”, diz ela com a voz cansada. Suas orações invocam santos da tradição católica, como São Francisco de Assis, Santa Joana D’Arc, São Vicente de Paulo, aliados a guias espirituais da primeira linha de grandeza do kardecismo como André Luiz, Bezerra de Menezes, Eurípedes Barsanulfo e Emmanuel. Com o auxílio de algumas folhas para retirar a energia negativa que paira sobre as pessoas que lhe procuram, ela faz a oração, pede para que seja feito um escudo de proteção sobre a pessoa e lhe dá um pequeno gole d’água benzida (fluida) para complementar a benzeção.
Confiança
A designer Marina Tartuce Umeda foi com a sogra levar a pequena Eduarda, de apenas seis meses, para ser benzida pela bondosa octagenária. A atenção da vovozinha para com a criança de colo enternece quem assiste a cena e sua atenção durante a oração enche os olhos. Eduarda fica no colo da mãe enquanto dona Eurípia faz a prece e passa os três ramos por sua cabeça e corpo tirando o quebranto.
“Eu fui beneficiada por isto também, porque minha mãe me levava a uma benzedeira. Trouxe minha filha para benzer porque sei que isso só fará bem a ela e tenho fé que será uma coisa agradável, que ela dormirá melhor e terá um desenvolvimento mais harmônico”, comenta Marina. A confiança se traduz em esperança de que qualquer energia negativa sobre a pequena filha será dissipada.
Em sua simplicidade, a benzedeira Eurípia explica que há anjinhos bons que gravitam em torno dos bebês para brincarem, que são seres de luz que divertem as crianças e lhes auxiliam. Entretanto, há outros anjinhos rebeldes que provocam desgostos nos pequenos indivíduos e que somente com a benzeção eles são levados por outros seres de luz para serem doutrinados. “As crianças com quebranto têm dificuldade para dormir, se assustam à toa e choram demais”, explica ela.
Mistérios da reza forte
No Setor Sudoeste, em uma casa simples na Praça C-05, Qd. 94, Lt. 02, número 51, mora uma mulher diferenciada. Efigênia Veríssimo de Araújo nasceu em Conquista, distrito de Uberaba, Minas Gerais, e veio para Goiânia há mais de quatro décadas. Conhecedora dos mistérios da medicina natural que usa ervas e plantas diversas para tratar inúmeros males, ela se lembra que desde menina também descobriu que tinha uma força desconhecida para realizar uma prece (benzer) e dissipar diversos incômodos.
“Já benzi picada de cobra venenosa e a pessoa curou-se quase que imediatamente”, se recorda dona Efigênia. Em seu pequeno quintal, ela tem plantas diversas com poderes terapêuticos conhecidos pela cultura popular como guiné, espada de São Jorge, boldo, arruda, alfavaca, erva cidreira e sabugueiro, além de outras menos badaladas. Mas é na imposição das mãos e da benzeção mesmo que reside a força da fé das inúmeras pessoas que a procuram todas as semanas. Ela precisou até mesmo disciplinar dias e horários para atendimento ao público para poder manter sua rotina em casa.
Ela dá uma aula sobre os malefícios que trata nas pessoas que acorrem a sua casa. “Quebranto, mau-olhado, inveja, espinhela caída, vento virado, sol na cabeça e outros a gente pede para que Deus trate essa ou aquela pessoa. Até porque quem cura é Deus, eu apenas faço uma oração”, explica.
A operadora de telemarketing Karla Rosa leva sempre a filha Karollayne Rosa Benedito para ser benzida por dona Efigênia. “Às vezes passa até o tempo de levá-la ao pediatra, mas aqui para benzer eu trago sempre”, explica. Em média duas ou três vezes ao mês, ela comparece à velha senhora, que faz as orações e deixa a pequena de olhos vivos e atentos mais calma, dormindo melhor e sem chorar tanto. “Tenho fé e agradeço muito a bondade dela em cuidar dos nossos filhos assim”.
Dona Efigênia é sempre procurada por uma capacidade ultradiferenciada e pouco encontrada: sua reza forte, fé e sensibilidade singular lhe permitem benzer um determinado local e expulsar cobras venenosas e outros animais indesejados. “Eu faço uma oração e peço para essas cobras irem para outro local e não importunar quem está trabalhando honestamente”, comenta. Por seus serviços, ela não cobra nada, mas ressalta que “se alguém me oferta alguma coisa, eu aceito de bom grado”. Espirituosa e alegre, ela não se furta a uma brincadeira e tem sempre um sorriso sincero para receber e se despedir.
Sol na cabeça
No Setor Universitário, há outra benzedeira do mesmo nível que as anteriores. Dona Maria Floripes Ventura, aos 72 anos, é muito requisitada e chega a ter fila no corredor que dá acesso a sua casa. Na tarefa de benzedeira há cerca de 33 anos, ela também aceita a missão de rezar e fazer o bem com altruísmo e resignação. Sua capacidade de benzer e tirar incômodos transcendem os bairros de Goiânia e trazem pessoas dos mais longínquos locais em busca de suas orações e imposição de mão.
Uma dessas fiéis e gratas pacientes é a pensionista Almeri Espíndola Ferreira, gaúcha de 72 anos, que conta que passou por maus bocados por longo tempo. “Sofria com uma crise constante de enxaqueca e as dores de cabeça eram horríveis. Tentei inúmeros tratamentos e passei pelos mais diversos exames para tentar identificar a origem dessas dores. Somente aqui tive a cura que tanto desejava”, explica.
Dona Almeri se lembra que uma cabeleireira conhecida do salão que ela frequenta sugeriu que ela procurasse a benzedeira Maria Floripes, que poderia ter uma grata surpresa. O diagnóstico foi que ela sofria do mal de “sol na cabeça”, incômodo que se notabiliza por uma energia incomum no alto do crânio e que pode ser descoberto colocando um pano no alto da cabeça e uma jarra ou um copo d’água sobre ela. “A água ferve de forma inexplicável”, conta outra frequentadora da casa de Efigênia. Almeri frisa que sua filha é médica e também frequentou a benzedeira em busca de uma oração para o filho pequeno. “Se até mesmo uma pessoa de formação científica como uma médica acredita que pode haver o bem em uma benzeção, eu só posso acreditar”, sacramenta ela.