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De onde me olham me julgam pelo tom da minha pele

Neste Dia da Consciência Negra, o Diário da Manhã te convida a refletir sobre o racismo praticado sutilmente em nossa cultura

Foto: PAULO PINTO/ AGÊNCIA BRASIL Foto: PAULO PINTO/ AGÊNCIA BRASIL

O que pensar quando se é encarado na rua, ao entrar numa loja ou pegar um ônibus? Olhos incisivos sobre cabelos, roupas ou procurando pelas mãos e o que elas fazem, no que tocam, se são escondidas nos bolsos. Para 88,3 milhões de brasileiros que se declararam brancos ao IBGE no censo de 2022, essas perguntas não costumam fazer muito sentido, já que nunca passaram por um problema enraizado em nossa cultura: o racismo, que afeta mais da metade dos brasileiros.

Pela primeira vez em 150 anos, os negros e pardos no Brasil superaram a parcela de pessoas brancas. São 92,1 milhões de pardos, que correspondem a 45,3% da população, e 20,7 milhões de pretos, equivalentes a 10,2% dos brasileiros. Somados, esses dois grupos étnicos são 55,5% dos habitantes de um país que têm encontrado, entendido e abraçado suas raízes.

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é uma data para brasileiros de todas as cores refletirem sobre seu lugar e papel numa sociedade que carrega a herança de ter sido, no mundo, o país que mais recebeu africanos escravizados.

Olhar de julgamento

“Já sofri preconceito de pessoas falarem da minha cor, me chamando de preto e dizendo que eu sou uma pessoa pobre, sempre num tom de brincadeira”, diz o ator e professor Gabriel Cardoso, de 37 anos. Ele percebeu o preconceito de uma forma muito mais sutil do que palavras expressamente ditas. “Em um determinado momento – essa brincadeira, essa fala – foi onde eu me toquei que eu era uma pessoa preta. Foi importante me ver nesse lugar e perceber que eu sou uma pessoa preta, uma pessoa pobre e como as pessoas se valem desse tipo de comentário, desse tipo de brincadeira, para te afetar, para te ofender.”

Gabriel sentiu na pele os efeitos do chamado racismo estrutural. Segundo o Psicólogo da Saúde na Atenção Primária, Fabrício Fonseca, esse é o tipo de racismo existente no esqueleto da sociedade, moldando a mentalidade de todos. O preconceito se manifesta, muitas vezes, de forma velada. “Se a estrutura social é racista, precisamos de força para mudar a sociedade, e não somente os atos racistas que a reforçam”, diz Fabrício.

Uma pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança traz, na prática, os efeitos do racismo estrutural. Os números foram divulgados na quinta-feira, 7 de novembro, e indicam a morte de uma pessoa negra a cada quatro horas durante intervenções policiais em nove estados brasileiros. Em 2023, foram 4.025 mortes, sendo 2.782 de pessoas negras – 87,8% do total. Os três estados que mais apresentaram vítimas negras em ações policiais foram Bahia, Rio de Janeiro e Pará.

Encarando o racismo estrutural como perspectiva, a questão vai além do ato de matar. Trata-se do espaço geográfico historicamente reservado a essas populações, como favelas e periferias, onde enfrentam mazelas sociais e carência de serviços essenciais, como saúde e educação. Segundo dados do Censo 2022, o índice de analfabetismo entre pessoas pretas é de 10,1% e o de pardos é de 8,8%. Já entre brancos, os que não sabem ler nem escrever somam 4,3%.

Olhar para si e para suas raízes

Mesmo diante de tantos obstáculos, o Censo 2022 revela que os olhos de julgamento têm sido combatidos por uma nova forma de olhar. O índice de pessoas pretas mais que dobrou entre 1991 e 2024, alcançando 10,2% da população brasileira. Na visão dos especialistas no assunto, esse crescimento não se deve apenas ao nascimento de novos brasileiros da comunidade negra. Também tem a ver com algo mais poderoso do que o racismo: o senso de pertencimento.

Para a historiadora e conselheira do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais, Wania Sant’Anna, em entrevista à Agência Brasil, os brasileiros negros e pardos passam “um momento de reconhecimento de pertencimento étnico-racial no terreno da negritude e da afrodescendência”.

Nos últimos anos, com a popularização das conexões sociais através da internet, a pauta negra, cultura afrodescendente e políticas afirmativas ganharam força e espaço dentro da sociedade. As comunidades negras e pardas tiveram força para olhar a si mesmo e às suas raízes, resgatando o orgulho e o pertencimento às suas cores e raças.

“O crescimento de pretos e pardos tem a ver com o quanto o Brasil vai se encontrando consigo, como uma nação onde a presença negra, não branca, é grande em termos de fenótipo [características genéticas e proporcionadas pelo ambiente no qual se vive], de cultura, de religiosidade”, diz a cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Cida Bento.

Cida, também autora do livro O Pacto da Branquitude, conclui: “Antes [ser negro] era negativo e hoje vem associado a uma cultura plural, diversa, que acolhe outras. Agora é possível se reconhecer negro como uma coisa boa. A discussão disso tem vindo das vozes negras sacudindo a sociedade para olhar para aquilo que o país é.”

Onde a luta contra o racismo acontece

Uma pessoa branca jamais entenderá plenamente o que é sentir na pele o olhar de julgamento do racismo. Embora não seja mais a cor da maior parte dos brasileiros, brancos ainda são maioria nos espaços de poder político, social e cultural. Por isso, o acolhimento e empatia pela causa são tão importantes.

Perguntado sobre qual a primeira coisa que uma pessoa branca precisa entender sobre racismo, Fabrício responde: “É preciso entender que ele existe, por mais que não sinta ele. Entender os problemas sociais, que fazemos parte de uma sociedade de estrutura racista.” Para o psicólogo, essa atitude de reconhecimento contribui para a adoção de atitudes que contribuam para mudanças reais.

Não se pode pensar em racismo sem pensar em vítimas. Emocionalmente, essas pessoas podem carregar sentimentos de baixa autoestima, frustração e impotência. Para tratar da ferida, Fabrício diz que sempre será preciso a presença afetiva de outros. “É importante estar com pessoas que ouçam, acolham, deem o espaço de fala e de sentir aquela dor para se curar”, ele conclui.

A sociedade frente ao futuro

Perguntado sobre o futuro, Gabriel hesitou na resposta. “Com o avanço de pautas ultraconservadoras, que se posicionam contra movimentos como antirracismo, fica difícil imaginar que teremos um futuro melhor. Teremos mais dificuldades, sendo necessário mais articulações contra o racismo, para enfim, termos uma sociedade mais justa, se é possível chegarmos a isso”, ele disse, por fim.

Como sociedade, ainda temos um caminho a trilhar para alcançar uma realidade onde as diferenças étnico-raciais fiquem apenas nas cores de peles, expressões culturais e religiosas, e não sejam motivos de desigualdade, mas de apreciação.

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