A discussão acerca da credibilidade da imprensa se tornou mais séria do que jamais foi. Com o advento da internet, o acesso à informação se tornou mais democrático e o jornalismo se perde na pressa da produção, falhando nos princípios éticos e práticos do ‘fazer jornalístico’.
Uma sequência de erros jornalísticos marcou negativamente a imprensa brasileira em 1994. Duas mães denunciaram que seus filhos, de 4 anos, haviam sido abusados sexualmente pelos donos da Escola Base, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, a professora Paula Milhim Alvarenga e seu esposo, Maurício Monteiro Alvarenga, motorista de uma kombi que transportava as crianças.
O caso aconteceu em São Paulo. O delegado responsável pela investigação, Edélcio Lemos, enviou os filhos de Lúcia e Cléa ao Instituto Médico Legal (IML) e conseguiu um mandado de busca e apreensão ao apartamento onde, supostamente, as crianças eram abusadas. No local, nada foi encontrado, então as mães buscaram a imprensa.
A notícia gerou grande repercussão e revolta. No entanto, na época haviam apenas as declarações do delegado, da família e laudos inconclusivos. Os veículos de comunicação não se preocuparam em ouvir a versão dos acusados, os quais tiveram suas casas invadidas pela população. A Escola Base também foi invadida e teve o muro pixado com frases que pediam por justiça e prisão e acusavam Maurício de estupro.
Vale ressaltar que o Código de Ética dos Jornalistas prevê que os profissionais devem “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. Além de estar previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 88, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", portanto, todos, incluindo jornalistas, devem utilizar a presunção de inocência.
A repórter Kamylla Rodrigues afirma que é essencial que o profissional utilize técnicas de linguagem na hora de noticiar um fato. “Tem que ser feita a checagem. Mas a gente erra, polícia também erra, fala uma coisa, depois volta atrás, fonte oficial erra, o personagem erra. Você tem que colocar ali para o seu telespectador, ouvinte, internauta ou leitor que aquela informação pode ser atualizada.”
Em junho, três meses após a primeira denúncia, o caso foi encerrado e todos os acusados que trabalhavam na escola foram inocentados. Mas, naquele momento, o dano moral e material era irreparável.
Caso Amélia Vitória
O caso da adolescente Amélia Vitória, de 14 anos, movimentou o noticiário nacional no final do ano passado. As investigações sobre o desaparecimento da menina foram acompanhadas de perto pela imprensa, que divulgou fotos de um homem preso suspeito de ter abusado sexualmente e matado a garota. Após a veiculação da imagem, a casa onde o homem morava foi incendiada por moradores. Contudo, ao ser realizada perícia e exames de DNA foi comprovado que outro homem havia cometido os crimes contra a garota.
Jairo Menezes é editor e explica porque decidiu não publicar a imagem do suspeito. “O que a gente aprende é que a divulgação de qualquer tipo de fato, de qualquer tipo de assunto jornalístico deve ser feita depois de uma checagem exaustiva. Eu não consegui chegar à exaustão da checagem que me confirmasse aquele fato. Por isso, a minha decisão foi de não divulgar.”
Em 2023, quase três décadas depois do ocorrido envolvendo a Escola Base, o impacto das notícias ‘falsas’ e mal apuradas continua fazendo vítimas e agora o “tribunal” é online.
A popularização das redes sociais possibilitou a criação de portais de notícias com a produção de matérias dinâmicas e muitas vezes sem aprofundamento e contextualização; grande potencial de propagação e replicação, gerando alcance descomunal e resposta imediata do público.
Em dezembro, Jéssica Canedo, de 22 anos, foi vítima de mais um massacre da opinião pública. O perfil da “Choquei”, uma página no Instagram, publicou prints de uma suposta conversa entre Jéssica e o humorista Whindersson Nunes. Após receber diversas mensagens e comentários ofensivos e se manifestar publicamente a fim de esclarecer a situação, a mulher tirou a própria vida.
Em nota, o dono do perfil, informou que “a Choquei passa por um profundo processo de reavaliação interna dos métodos adotados visando a implementação de filtros e códigos de conduta para evitar que episódios dessa natureza voltem a acontecer.''
Jairo afirma não considerar conteúdo de redes sociais jornalismo. "Fofoca, publicidade, não vejo como jornalismo independente. Esse tipo de trabalho é muito prejudicial a informação. Eu não acredito que um jornalista formado, em um veículo sério publicaria algo no tom que foi publicado neste caso", pontua.
Questionada sobre o imediatismo da profissão, Kamylla esclarece que informação boa é informação verdadeira, com qualidade e não a informação que chega primeiro. "Largar um pouco essa instantaneidade e focar na qualidade. Checar primeiro."
Consequências
A Rede Globo de Televisão foi condenada a pagar R$ 1,35 milhão para reparar os danos morais sofridos pelos donos e pelo motorista da Escola Base. Antes da Globo, foram condenados os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo e a revista Isto É.
O caso envolvendo "Choquei" movimentou as redes sociais. Os internautas pedem que Raphael Souza, criador da página de fofoca seja responsabilizado pela morte da jovem. Em vídeo divulgado pela Polícia Civil, o delegado responsável pelo inquérito Felipe Oliveira Monteiro, afirmou que a investigação apura se o suicídio da jovem teria sido induzido, instigado ou auxiliado.
“Se ficar constatado que a Jéssica foi vítima de eventual crime contra a honra, é possível que a gente faça o desmembramento do inquérito policial para que instaure uma outra investigação, a depender da manifestação de vontade da família da vítima", disse.
O caso foi utilizado como exemplo pelo Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvio Almeida e pelo comediante Whindersson Nunes, também vítima da fake news, para defender a regulação das redes sociais.
“Tragédias como esta envolvem questões de saúde mental, sem dúvida, mas também, e talvez em maior proporção, questões de natureza política. A irresponsabilidade das empresas que regem as redes sociais diante de conteúdos que outros irresponsáveis e mesmo criminosos (alguns envolvidos na política institucional) nela propagam tem destruído famílias e impossibilitado uma vida social minimamente saudável”, publicou o ministro em seu perfil do X, antigo Twitter.
"Iniciar um movimento para ver se contribui para a gente criar uma lei chamada Jéssica Vitória para aprimorar a legislação brasileira nesse negócio que está acontecendo agora, que é esse jornalismo não oficial. Que isso é muito perigoso. Tem gente que tem muito seguidor e diz que não é uma coisa oficial, mas é uma coisa que impacta de verdade", afirmou Whindersson.