Na segunda matéria da série Esconderijo, o leitor do DMRevista vai conhecer o trabalho do cantor Naire, que em 1974 lançou seu único disco. Ultimamente, com a explosão da internet, seu álbum, ainda não editado em CD, voltou a conseguir destaque por compartilhamentos em blogs de colecionadores de vinil. A pouca informação disponível sobre o álbum e seu autor em meios de comunicação têm criado uma áurea mítica em volta do disco, tornando a foto da capa o único contato do público com a figura Naire. Hoje, no Rio de Janeiro, ele trabalha com músicas terapêuticas e guarda um acervo de mais de 100 canções, que incluem trabalhos inéditos do compositor Paulinho Tapajós, falecido em 2013. Nesta edição entraremos em contato com as histórias por trás da produção desse misterioso disco e com o resgate histórico da carreira meio escondida desse artista.
O cantor e compositor Naire Siqueira nasceu em Goiânia no dia 15 de junho de 1943. Sua história musical teve início em corais de igreja e em trios vocais. Ele conta como percebia o cenário musical embrionário da jovem cidade nas décadas de 1950 e 60. “Quando eu morava em Goiânia não tinha quase nenhuma movimentação musical. Compositores só os muito antigos, seresteiros, mas isso não é do meu tempo”. Em 1965, foi para São Paulo estudar arquitetura. Lá teve contato com outros músicos da cena MPB.
“Em São Paulo eu morava em um lugar chamado Maria Antônia. Ali ficavam os barzinhos e todo o esquema intelectual e musical acontecia. A gente ia pra um bar chamado Quitanda. Chico Buarque, Maranhão, Edu Lobo, um pessoal frequentava aquele lugar”. O contato com Carlos Vogt, professor de desenho artístico na faculdade de Arquitetura, gerou o lançamento de seu primeiro compacto. “Uma das primeiras músicas que eu fiz se chama Senhora de Luar. Carlos Vogt, uma figura intelectual de São Paulo, ouviu minha música e fez uma letra pra ela”.
No ano de 1968, ao conquistar o terceiro lugar de um festival da TV Tupi, com a canção “Senhora de Luar”, o cantor chamou a atenção da gravadora Chantecler, que lançou a música. No ano seguinte, Naire retorna a Goiânia para participar do festival Comunicasom, organizado por Arthur Rezende, que tinha a intenção de trazer músicos de fora de Goiás para o evento. “Nesse meio tempo conheci o Tibério Gaspar. Fizemos juntos a música ‘Companheiro’. Foi ele quem me chamou pra ir morar no Rio”.
O disco
Em sua nova cidade, Naire conheceu o cantor e compositor Paulinho Tapajós, com quem viria a firmar uma parceria musical e amizade duradoura. A união dos músicos teria como resultado dois discos autointitulados lançados no ano de 1974, pela RGE, e várias outras canções. Naire relembra o primor da produção de seu disco, motivado pelo sucesso do compacto de ‘Companheiro’, nas rádios. “O LP de 74 saiu junto com outro do Paulinho Tapajós. Gravamos nas mesmas sessões. Tinha o pessoal do Azymuth, Pascoal Meireles, e pessoal que era a nata da música naquele momento.”
O LP conta com 13 canções que transmitem uma ideia de calmaria e movimento, que reflete as raízes de Naire, suas mudanças de cidade, viagens e descobertas musicais. A leveza do trabalho é o que mais chama a atenção – e faz uma ponte às terapias musicais de um momento seguinte de sua carreira. É um disco muito bom pra se escutar do começo ao fim, com passagens orgânicas e vários instrumentos nos arranjos.
‘Quinze Anos’ abre o disco com participação vocal de Paulinho e reflexões sobre o passar do tempo. ‘Um dia azul de Abril’, escrita durante uma viagem dos dois, consegue provocar no ouvinte a sensação de rio correndo, com um vocal carregado de sutileza e arranjos deslizantes. ‘O Menestrel das Cabras’ é uma homenagem ao cantor e violeiro Elomar, que, segundo Naire, era seu “companheiro de beber cachaça nos anos 70”. ‘Duas Irmãs’ chega com um solo de guitarra espetacular, entregando para a última canção, ‘Feliz, Feliz’. Vocais femininos em algumas músicas completam o charme do disco.
Outro elemento marcante em Naire é o diálogo entre MPB, folk e música clássica, presente em sua carreira desde ‘Senhora de Luar’. “Tenho uma tendência forte a misturar música country brasileira com música clássica. O nome desse estilo é toada moderna. Muita gente fazia, como o pessoal de Minas. Milton Nascimento, Lô Borges e vários”. O cantor ainda cita influências de música internacional, desde folk à chanson francesa. “Meu ídolo maior era o Cat Stevens. Também gostava de John Dever, James Taylor e ouvia muito um francês chamado Georges Moustaki”.
Passados 41 anos do lançamento de seu disco, Naire conta como percebeu a repercussão de seu trabalho. “Eu tenho fãs no Japão, na Suécia e já viram meu disco na Alemanha. Nunca tinha visto nem as críticas positivas sobre ele. Foi com a internet que comecei a sacar o sucesso que eu fiz e não sabia que tinha feito”. Ele também critica a postura das gravadoras em relação aos músicos. “Naquela época lançavam o artista no mundo inteiro. Como não tinha jeito de ficar sabendo, não ganhávamos nada e nem sabíamos que estávamos fazendo sucesso. Deve ter saído muito mais discos do que me contaram e me pagaram”.
Publicidade
Dois anos após o lançamento de seu disco, Naire decidiu dedicar-se à publicidade. Ele conta que a timidez foi um elemento crucial para que ele preferisse ficar nos bastidores da música, onde se sentia mais livre. “Quando eu comecei no meio musical, eu tinha muita timidez com palco. Ao trabalhar nos bastidores achei melhor. Gostava de compor no meu estúdio, a hora que eu quisesse. A Nara Leão gostava das minhas músicas. Gravou umas 3 ou 4”.
Começou trabalhando na produtora pertencente ao cantor Marcos Valle, e em 1980 abriu a sua própria. “Inaugurei a Lira Produções artísticas em 80, e ela foi ate 96. Um dos últimos a trabalhar pra mim foi o Jorge Vercilo”. Ele ainda conta que muitos músicos que não se estabilizaram no meio viram na publicidade uma saída para continuarem a fazer o que gostavam. “Tinha muita gente boa que saiu da música pra fazer jingles, propagandas políticas, anúncios pra televisão”.
Música Terapêutica
Uma música feita para um estande de vendas de produtos naturais em 1996 chamou a atenção para o potencial terapêutico das composições dele. “Quando eu botei a música pra tocar, todo mundo ficou impressionado. Esse ano eu ganhei todos os prêmios de publicidade. Comecei a receber telefonemas do Brasil inteiro de gente pedindo aquela música pra meditar, relaxar, essas coisas. Foi quando decidi estudar sobre música terapêutica, pois não sabia nada sobre o assunto”.
O contato com o livro ‘O poder terapêutico da música’, de Handall McClellan, ajudou no aprendizado de Naire na área. “As emoções, a frequência cardíaca e a relação com o andamento da música eu aprendi a partir desse livro”. Hoje ele possui 7 CDs lançados, e diz só ter parado pela insuficiência que o formato CD adquiriu depois da internet. “Os meus CDs terapêuticos são vendidos pela minha própria gravadora, a Sonergia. Já saíram mais de 100 mil”.
Sobre estética e terapia, Naire explica que “a visão estética de uma música terapêutica é o transporte que ela faz para lugares calmos, e vai te envolvendo para que você se imagine em um lugar tranquilo. Não existe nada verbal, pois isso faz parte da racionalidade. A música ajuda a desligar-se do lado racional”. A música terapêutica também não deve ser confundida com musicoterapia. “A musicoterapia usa a música para tratar de problemas. Música terapêutica serve para meditar e previne problemas como estresse e insônia”.
Projetos
A visão musical de Naire parte de um princípio onde não existe espaço para preconceito. “Música é uma intuição. O músico apenas canaliza aquilo e transforma em música. Não se é dono da música, ela vem do universo. Você pode fazer o tipo de música que quiser, desde que você saiba definir o público alvo. O estilo musical não é o problema da música. A máquina que organiza o consumo que é meio ditatorial”.
Ele ainda revela que nunca deixou de compor, mesmo não tendo lançado mais discos de música tradicional. “Hoje com 71 anos me sinto no período mais criativo da minha vida. Tenho mais de cem músicas inéditas, que vou trabalhando de forma caseira no ipad, e divulgo no youtube”. Muitas letras de Paulinho Tapajós nunca lançadas também o motivam a voltar a cantar. Naire também já realizou cantorias associadas aos trabalhos de música terapêutica que faz em grandes empresas, misturando um pouco das duas áreas que receberam sua dedicação e criatividade durante a carreira.
O cantor planeja ainda lançar seu disco no formato CD, e conta que o material já está todo com a Som Livre, e que está procurando o momento para viabilizar o projeto. Mais experiente, ele enxerga que a timidez não deve mais inibir sua vontade de compartilhar novidades sonoras. “Agora, nessa idade, estou querendo achar um caminho pra não deixar meu trabalho apenas guardado dentro de mim mesmo. Saber que meu disco é escutado me motivou muito. O que é difícil é a questão financeira”.
Raízes
Durante nossa conversa, Naire avaliou o peso da música de raiz em seu trabalho. “Nunca perdi minhas origens. Minha aldeia é a música sertaneja. Almir Sáter é um grande ídolo”. O cantor conta também da influência do tempo vivido no Estado. “Minha infância foi na fazenda, bebia leite tirado na hora da vaca”. Musicalmente ele contava com a sensibilidade dos letristas que conviviam com ele. “Carlos Vogt, Tibério Gaspar e Paulinho Tapajós tiveram a sensibilidade de, através das letras, retratarem esse Naire caipira”.
Outro ponto tocado por ele foi a aversão à associação com a cultura caipira que alguns goianos disseminam, e ressalta que as riquezas orgânicas do Estado vem sendo esquecidas musicalmente, diante do crescimento da metrópole. “Os goianos precisam se unir mais. Existe muita disputa. As vezes eles acham que metrópole e grande cidade é o que dá visibilidade. O que faz de Goiás extraordinário é Goiás Velho, o Araguaia, as coisas naturais e simples. Grande cidade tem em todo lugar”.
A facilidade de contato com Goiás depois das redes sociais também vem aproximando Naire do seu Estado de origem. “Resgatei Goiás na minha vida graças ao facebook. Encontrei amigos com quem não conversava há 30, 40 anos”. Vários artistas locais são lembrados por ele, como os compositores Renato Castelo e Siqueira, Márcio Alencastro Veiga, Gustavo Veiga, Marcelo Barra, João Caetano entre outros. A novela Araguaia, da Rede Globo, trouxe em 2009 em sua abertura a canção ‘Companheiro’, cantada por Maria Eugênia, prima de Naire. O cantor esteve na capital goiana em 2011 no lançamento de seu livro “O ser humano orquestra”.
Escute um pouco de NAIRE:
https://www.youtube.com/watch?v=eqjaf-X2xAE
https://www.youtube.com/watch?v=Jhmq89N0FKU
https://www.youtube.com/watch?v=haeuPyq5v6E