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Criador dos Piratas do Tietê avisa:“Não tenho por que parar”

Rariana Pinheiro,Da editoria DMRevista

A data de hoje – como muitas outras – é marcada por vários acontecimentos emblemáticos. Mussolini, ditador da Itália, por exemplo, declarava guerra à França e Inglaterra há exatamente 75 anos. Retrocedendo ferozmente alguns séculos, em 323 a.C., Alexandre, o Grande deixava este mundo. Mas, para nós do DMRevista, estas próximas 24 horas são para lembrar o nascimento da criadora de personagens espirituosos e marcantes, como: Overman, Piratas do Tietê e Hugo Baracchini: a cartunista e chargista Laerte Coutinho. Hoje, completa 64 anos, tem mais de 40 de carreira e muitas histórias, literalmente, para contar. Tanto nos quadrinhos como na vida real, pois se no mundo dos desenhos criou figuras que questionam a “ordem social”, na vida pessoal teve coragem de recriar a si mesmo, ao assumir identidade de gênero feminino. Quando a procuramos para uma entrevista – meio descrentes, confesso, pelo pouco tempo que tínhamos –, seu rápido retorno surpreendeu. Menos de 2h já tínhamos na caixa de mensagem um e-mail dizendo: “Pode ligar agora? Beijo!”. Bem, é claro que ligamos prontamente e, do outro lado da linha, uma voz atenciosa, e de pensamento sagaz – entre cuidados com o gato –, nos revelou um pouco sobre como funciona seu processo criativo, a postura estatualizada do preconceito atual, entre outros assuntos. Confira, a seguir, trechos da entrevista.

Os personagens mais marcantes:

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Overman: super-herói poderoso, porém bipolar. Por vezes mostra ter moral e hábitos retrógrados. Seu maior inimigo é o próprio ego.

capa - laerte - box 2 - 2 deus

Deus – Retrata o Criador, que após ter concretizado o mundo e a humanidade, gasta a maior parte do tempo em afazeres menores, como discutir com o arcanjo Gabriel e jogar cartas com Buda.

capa laerte box 2 - 3 piratas do tietê

Piratas do Tietê - esses piratas trocaram o mar pelo, não menos perigoso, rio que corta a cidade de São Paulo. Hoje em dia a cidade é o alvo de seus saques e matanças.

Muriel/Hugo - personagem crossdresser que brinca com os padrões de gênero, alternando entre masculino e feminino. O enredo das tirinhas, narra o dia a dia da população trans no Brasil.

A Entrevista

DMRevista (DM) — Qual foi o momento em que você percebeu que ia viver para os quadrinhos?

Laerte Coutinho (LC) — Sempre desenhei desde criança, e, em algum momento, eu descobri as qualidades de narração e expressão do desenho e como isso se encaixava nas minhas expressões particulares. Porque toda criança desenha, mas só algumas fazem dos desenhos a forma de expressão prioritária. Descobri o valor e peso dessa expressão, que me levou a fazer desenho de humor. Acho que o momento em que era universitário também colaborou nesta decisão. Estudei na USP em 1969, no momento que o movimento estudantil sofria forte impacto da ditadura. E na USP tinha uma gestão interessante, que procurava reanimar as atividades juvenis. Comecei, então, a publicar meus desenhos nos jornais acadêmicos. Fui tomando gosto, apesar de ter escolhido a música durante a faculdade, aí eu a abandonei e fui trabalhar com desenho.

DM — Consegue identificar quem é o público que curte seu trabalho?

LC — É difícil falar, porque eu já trabalhei em várias publicações, como em meios sindicais, infantojuvenis, jornais gerais, como o Estadão e a Folha (Folha de São Paulo). E a vida profissional do cartunista é muito diversificada. Mas o fato é que fiz de tudo, inclusive textos para televisão.

DM — Você pode nos contar como foi a criação de alguns de seus personagens?

LC — Parei de fazer personagens há 10 anos, só continuei com a Muriel, que é uma personagem transgênero e eu me interessava. Depois de uma reflexão, eu engavetei todos os personagens em 2005. De lá para cá, tenho procurado mais a história. Mas, antes disso, eu já gostava de trabalhar assim: o personagem nascia do desenrolar de uma história. Vinha com o roteiro, não trabalhava um personagem do zero, não tinha uma receita. Para mim não funcionava. Como aparecia no próprio roteiro piratas, Deus, eles viravam personagens. Fazia um contexto e achava o personagem lá.

DM — Como foi a experiência de apresentar o programa de tevê Transando com Laerte, na TV Brasil, e em quais outros projetos está envolvido atualmente?

LC — Os programas já foram gravados. É uma experiência. Mas, para mim, já passado. O Canal Brasil comprou 26 programas e a continuação deve acontecer de acordo com a forma que será recebido pelo público. O que ando trabalhando é em uma história que estou escrevendo e tem também a rotina da Folha (Folha de São Paulo), das tiras, das charges.

DM — E, como é este novo projeto que está escrevendo?

LC — É um projeto que eu estou tocando há alguns anos, uma espécie de continuidade de um livro sobre memórias minhas e da TV. Eu tenho mais ou menos a idade da TV no Brasil e eu lembro da minha infância e da TV de uma forma muito misturada. Um apanhado de coisas. Fiquei com vontade de fazer uma história mais ou menos neste sentido de evocação. Mais que contar a história quero lembrar o clima e ideias em torno de sexo, política, que são dois eixos de vivência muito sérios e importantes para mim e para o mundo, e que se desenrolaram nas décadas da minha juventude. Ainda não sei de que forma e com quais recursos deverá ser lançado. Não tenho um prazo.

DM — Seus personagens sempre deram com humor, com um toque de ironia na sociedade. Para você, qual o papel do comédia na transformação social?

LC — Às vezes é o contrário da transformação. Às vezes tem o papel da manutenção de certos padrões. O humor é uma linguagem que presta também para o conservadorismo. Além da transgressão, também combate a transgressão. Na história humana há exemplos que o humor foi usado para combater as transformações sociais e políticas. Darwin (Charles Darwin), por exemplo, foi ridicularizado durante décadas. E, de certa forma, é até hoje. Qualquer pessoa inovadora recebe uma carga de ironia bastante agressiva. O humor em si não é revolucionário, nem reacionário. As pessoas que são. E, hoje no Brasil é muito notória uma linguagem muito conservadora.

DM — E sobre a causa LGBT, ao mesmo tempo em que a sociedade parece avançar, a propaganda do O Boticário e o casal feminino da novela Babilônia têm sofrido ataques raivosos. Afinal, estamos evoluindo neste sentido?

LC — A gente tem mudado. Isto são sinais de movimentação na sociedade. Eu, pessoalmente, me coloco de um lado, do que busca a liberdade de expressão, da pessoa que combate o conservadorismo. Mas é uma luta dinâmica, um cenário difícil de definir de forma linear. Não é uma linha só que está acontecendo. É um quadro complexo. Eu vejo assim. Eu sei o que eu quero fazer neste quadro, defender meus pontos de vistas de forma razoável e precisa. Mas um País é uma coisa bem diversificada.

DM — Percebe que as coisas mudaram desde quando se assumiu transgênero?

LC — Casos dos quais muitas pessoas ficam sabendo, estimulam as pessoas a buscar direitos. Mas, por um lado, há muitos jovens sofrendo preconceitos, na aceitação da sua personalidade. Sofrem ataques e vemos que há uma realidade difícil de ser mudada, pois muitas medidas nem começaram a ser tomadas. Mas o fato de serem tomadas algumas medidas já é alguma coisa. É animador saber que existe um discurso racional dentro dessa confusão toda.

DM — Como definiria Laerte com 64 anos?

LC — De certa forma, Paul McCartney me deu a chave na música dos Beatles, When I'm Sixty-four [cantarolando a música cujo o título em português é: Quando eu Estiver com Sessenta e Quatro]. A canção diz: será que você ainda vai me querer quando eu tiver 64 anos, perdendo meus cabelos? Por isso ela me deu uma chave de como as idades estão contidas umas nas outras. É claro que ele não fez uma ideia realista, porque é uma música romântica, mas de alguma forma ainda estou vivendo partes de outras idades, inclusive, de idades que eu ainda não atingi, como 87, 95 ou 123 (risos). Mas, ainda não sei como é se sentir com 64 anos. Quando eu tinha 20 anos pensava que essa idade nem ia chegar. Alguém com 70 anos era algo muito velho. Mas hoje vejo pessoas fazendo e começando coisas.

DM — Então,você está ativa e produzindo muito?

LC — Ativa e passiva também (risos). Desisti de algumas coisas. A produção desenfreada de história em quadrinhos abaixei muito o padrão de produção. Não tenho ânsia de fazer, mas ao mesmo tempo ainda estou fazendo. Não quero parar. Se eu estiver na linha da expectativa, não tenho por que parar.

Quem é Laerte?

Participou de diversas publicações como a Balão e O Pasquim. Também colaborou com as revistas Veja e Istoé e os jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo. Em conjunto com Angeli e Glauco e Adão Iturrusgarai, desenhou as tiras de Los Três Amigos. Na TV foi roteirista na TV Pirata e de programas como: Sai de Baixo e TV Colosso. Atualmente publica charges na Folha de São Paulo e está no ar na TV Brasil, apresentando o programa Transando Com Laerte. Este ano, contribuiu com o documentário da cineasta Miriam Chnaiderman, De Gravata e Unha Vermelha, que relata a realidade de Transsexuais, transgêneros e adeptos do crossdressing.

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