Por Heitor Vilela
"A obra de arte: é um negócio ali, no meio do povo, é um livro, um quadro, uma música. É matéria se chocando com matéria, ideia alimentando ideia, uma troca muito agressiva ou muito sutil, mas uma troca constante."
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Goiânia recebe a exposição REVIRAMENTO dos goianos: Marcelo Dakí e Heiridiane Milhomem. Entre os dias 4 de setembro e 15 de outubro, a cidade experimentará uma dose de vivência e transição da vida destes dois artistas. A partir de um denso trabalho com técnicas mistas sobre tela entramos em uma nova fase de Dakí. A exposição também apresenta o trabalho da jovem Heiridiane Milhomem. Ela traz ilustrações psicodélicas e transcendentais de saltar o olhar.
Marcelo Dakí aborda em seu trabalho uma temática de relação do interior e exterior. Desde seus mapas sensoriais expressos em desenhos ou telas, ele exprime uma visão interna e sua localização em uma revolução política de justiça social. Acompanhado de uma imagética primitiva, suas telas de cores vibrantes são repletas de elementos simbólicos e referências históricas. O uso do texto de uma forma gráfica completa a história de suas obras. Dakí passa de uma fase peculiar e recolhe estas memórias formando produtos visuais. Tem em sua trajetória algo marcante para o seu novo passo estilístico. Teve seu ateliê, aonde nas paredes marcava o excesso de tinta, pintado completamente de branco. E desta forma começa novos caminhos na arte e na vida.
Heiridiane Milhomem traz maduras manchas e riscos pretos no branco. Seus trabalhos contam histórias alucinógenas e caminham em uma realidade mutante. Heiri, como a artista é carinhosamente chamada, ainda jovem já mostra técnica aprimorada e sabedoria na composição. Seus quadros confundem a visão e aguçam a imaginação. Uma experiência mística.
Quem frequenta os eventos culturais alternativos de Goiânia, certa vez já deve ter se deparado com a figura de um jovem magro, com barbas e cabelos volumosos, sentado ou encostado em algum canto, apenas observando e desenhando algo. A chance de ver essas criações múltiplas e experimentais, é nessa concentração de obras e fluxos de pensamentos escarrados em tecido. A exposição fica na livraria Evoé Café com Livros, na R.91 Qd 20B nº 495 - Setor Sul.
O DM Revista conversou com o salvador Dakí, (apesar da edição) conseguiu nos mostrar um pouco da mente criativa por trás das fritações estéticas:
DM Revista - Como as produções do Dakí e da Heiri se encontraram?
Ingressei no curso de Psicologia da UFG em 2013, e assim que cheguei lá alguns colegas viram os meus desenhos e me disseram que tinha uma menina que desenhava muito bem, e era minha veterana. Procurei saber quem era e a gente ficou amigo, fizemos alguns zines juntos com outras pessoas do curso (o Porta Besouro). De lá pra cá cada um viveu uma série de coisas, de transformações na vida e nas criações, e daí quando surgiu essa oportunidade de expor no Evoé, convidei a Heiri pra expor comigo, porque acho o trabalho dela muito consistente e grande parte das pessoas desse circuito que conhecem meu trabalho ainda não conhecem o dela, daí ela aceitou e embarcamos juntos.
DM Revista - Quando e como começou o Daki enquanto expressão visual?
Antes de abraçar a causa, eu nunca fui muito de desenhar, apesar de que desde criança sempre tive vontade de criar histórias em quadrinhos (elas sempre foram importantes pra mim, desde o Maurício de Sousa até as graphic novels que fui conhecer quando mais velho). Em 2011, trabalhando como caixa num bar, quando não estava recebendo de algum cliente passava a noite toda desenhando em pedaços pequenos de papel e daí guardava tudo, às vezes mostrava pros amigos e tal. Até que em 2012, pra esvaziar a cabeça de um monte de turbulências que vivi na época, passei uns dias desenhando por horas, colorindo com lápis de cor, e daí percebi que eu estava aprendendo algumas coisas, traços novos, me arriscando um pouco mais a cada desenho que eu fazia, e passei a botar fé. E botei mais fé ainda quando o pessoal que me conhecia viu o que eu estava fazendo. Nessa época decidi: vou fazer isso, vou ser desenhista.
DM Revista - você sempre foi conhecido na cidade por suas zines e materiais impressos, como anda essa parte da produção?
O último zine que publiquei mesmo foi no início de 2014, o Manuscrito Orroubô #3, de 40 páginas, levei um mês inteiro desenhando e escrevendo esse. Foi o último de uma série feita quase toda durante momentos que vivi nas ruas de Goiânia, nos bares do Centro e do Universitário, conhecendo as pessoas que moram por aqui, que faziam coisas tipo o que eu estava fazendo - escreviam, desenhavam etc. De material impresso publicado, acho que foi meu trabalho mais significativo, ao menos pra mim, porque através dessa vivência conheci basicamente todo mundo que conheço hoje por aqui (com exceção do povo da UFG, que comecei a conhecer quando entrei em Psicologia na Faculdade de Educação). Foi meio que um dispositivo social! Giovana Belém, Ksnirbaks, Walacy, você (Heitor Vilela), os caras da Propósito Recs e dezenas de pessoas que agem e vivem aqui em Gyn, todo mundo conheci por conta da produção dessa série.
Atualmente tô reunindo material (desenhos e versos) que devem ser publicados numa parceria com a Propósito Recs, mas vamos ver. Tenho um livro não publicado também, fruto de uma pesquisa pessoal sobre a figura do golem, da mitologia judaica, mas é um negócio caótico demais pra conseguir uma editora (e caro demais pra lançar independente, é todo colorido e tal, e meus zines foram todos em preto e branco).
DM Revista - Quais são os principais elementos que diferenciam sua obra impressa e na tela?
Em primeiro lugar as cores. É evidente: investir em material pra pintura leva a produção pra outro rumo. Cada tela é um processo muito único - processo histórico também -, o que eu estava vivendo nos períodos em que pintei uma tela já não era o mesmo que vivi quando pintei outra. E como meu trabalho - impresso e em tela - tem esse lado bem documental mesmo, autobiográfico, minha vida influencia diretamente a minha produção. Quem conhece minha obra em tela sabe que quase todos os meus quadros contém palavras, às vezes frases, e acho que o peso de uma palavra numa tela é totalmente diferente do peso de uma palavra num texto escrito. A acessibilidade é outra coisa também. Não dá pra ficar carregando os quadros pra cima e pra baixo - apesar de eu ter feito muito isso em 2014 (risos), pintei dentro de ônibus inclusive -, pode danificar e arruinar uma obra que se for bem conservada dura muitos anos.
DM Revista - Você (ou sua arte) esta constantemente presentes no meio cultural goiano, você vida dialogar com esse espaço geográfico e social?
Agorinha chamei os zines que fiz de "dispositivos sociais". Vejo as coisas todas se construindo mutuamente: minha produção me apresentando às pessoas do espaço, e meu contato com as pessoas e o espaço influenciando minha produção. Desde que comecei a desenhar a sério acho muito interessante criar algo em espaços públicos, seja desenho, pintura ou escrita. Me parece até que é meio óbvio, mas se eu estou num evento no Martim, na porta do Cine Cultura, dentro da sala de aula, no meu quarto, em cada uma dessas situações estou lidando com elementos diferentes, pessoas diferentes, cada espaço tem sua configuração e expressão particulares, cada lugar tem seus átomos que estão circulando e se chocando o tempo inteiro, então penso que cada vivência vai me influenciar de maneira diferente e se eu estiver criando algo durante isso, esse algo vai refletir a experiência.
Recentemente comecei a mexer com os lambes também, colando desenhos meus pela cidade. Isso eu já nem sei como funciona direito, não sei quem vê, se as pessoas param pra olhar - sei que eu costumo observar arte dos outros quando vejo na rua, mesmo quando não me atinge tanto. Tenho essa questão com a obra de arte: é um negócio ali, no meio do povo, é um livro, um quadro, uma música. É matéria se chocando com matéria, ideia alimentando ideia, uma troca muito agressiva ou muito sutil, mas uma troca constante.
DM Revista - como funciona o seu fluxo criativo, planejamento visual ou improviso estético?
Olha, eu começo e vou fazendo (risos). Tem isso do lugar, às vezes me planejo para estar em algum evento com determinado material, levo folhas e canetas, chego e começo a criar, converso com as pessoas, escrevo algo que ouvi, só não tento representar com muito realismo nos desenhos porque não me considero muito retratista, só se minhas obras forem retratos emocionais mesmo. Uma conversa me influencia, um disco que estou ouvindo no ateliê me influencia, leva meu pensamento pra outro rumo, me motiva a misturar uma cor de tinta específica, a mudar de pincel, a cobrir uma parte do desenho com uma mancha preta, riscar algo que escrevi, mudar de página e começar um desenho novo.
Teve uma tela que pintei no meu segundo período na faculdade, fiquei duas semanas lá pintando, fui ao prédio mas não entrei na sala, fiquei pintando durante as aulas nessas duas semanas. E as pessoas observando, me perguntando coisas, perguntando dos meus motivos e tal, o que significava cada elemento, e eu interagindo com elas, recebendo as ideias delas também. E daí que a tela estava lá, super colorida, com galhos colados, cheia de informação, e no penúltimo dia antes de terminar eu de repente fico incomodado com algo que não sei dizer bem o que é, deito a tela no chão, arranco os galhos e cubro a tela toda com tinta preta, e daí ela vira outra coisa.
DM Revista - sobre a exposição, é uma série específica ou um apanhado geral da sua obra?
A maior parte é inédita, tanto os meus quadros quanto os desenhos da Heiridiane. A montagem ficou mais por conta do curador, o Marcus Turíbio, e acho que ele conseguiu fazer um trabalho bem legal na seleção e disposição das obras, o que será visto representa bem minha trajetória e minha fase atual. Lá estão meus trabalhos mais conhecidos, como a Ansiedade (que pintei no FICA em 2013, já foi exposta na galeria Potrich e na exposição que fiz no Palácio da Cultura, do MAG), a Mapa do Racha, que foi a primeira tela que pintei pra ser minha, a Síntese também. mas a maioria é material novo, tipo a Charlie, que pintei após aquele atentado que aconteceu na Charlie Hebdo, lá na França, e quem viu essa tela nem acha que ela tem a ver com as coisas que eu fazia antes, ela é muito "limpa", não tem nada escrito, só minha assinatura meio escondida, não tem nada se sobrepondo, tem uma colher soltando pipa no céu azul, porque eu via todo mundo se manifestando sobre o que havia acontecido, e eu queria documentar minha reação àquilo, mas não consegui achar nada pra dizer, e daí não usei palavras.
Tem uma série de telas que eu pintei quando estava sob efeito de medicação, um anti-psicótico meio pesado, e elas são muito diferentes também, acho que dá pra ver que muita coisa não estava fluindo, não são trabalhos com muita vida, querem viver, mas não têm condições. Por mais que eu os ache frios, pensei ser muito válido levá-los para lá. Uma outra série é de jogos de tabuleiro, e a intenção é transformar isso numa exposição maior no futuro, centrada nas possibilidades do tema. Tem uma também que é especial, a Gestalt-Combate, é uma doação que fiz pro projeto Amor Solidário desse ano, organizado pelo Douglas Valério. Quase todas as obras estão à venda (fizemos umas reproduções de alta qualidade também, mais acessíveis que os originais), mas essa será leiloada na página do projeto, com lances dados em forma de alimentos, brinquedos, roupas ou produtos de limpeza, e o que for arrecadado com as obras (são vários artistas participando) é doado para instituições de caridade.
DM Revista - como o leitor pode conhecer mais da sua obra?
Eu tenho um portfólio digital (http://daki.carbonmade.com), com imagens de algumas obras tanto impressas quanto em tela, além de alguns murais menores que fiz. No meu perfil do Facebook tenho algumas coisas espalhadas também, registros de saraus e shows em Goiânia, poemas, tudo digitalizado lá, e parte disso vai pra um blog onde publico esporadicamente o que escrevo e eventos dos quais participo (http://orroubo.blogspot.com). Tenho trabalhos expostos permanentemente no Evoé também. Sobre os zines, caso haja interesse, continuo fazendo cópias dos Manuscritos sob encomenda. Já para as telas criei um método que é o seguinte: se alguém se interessa por meu trabalho e me procura, marcamos um encontro em algum lugar, na casa da pessoa mesmo ou em algum outro espaço, onde for mais confortável para quem está encomendando, e daí deixo que ela se apresente para mim, algo como uma entrevista livre, sem duração definida, tomo nota de algumas coisas (cidade natal, experiências marcantes, artistas favoritos, religião), discutimos o tamanho da obra e o preço, e daí eu crio algo direcionado para essa pessoa, mas sempre deixando claro que eu não sei como será a obra finalizada, é uma surpresa tanto pra mim quanto para o outro.