É muito comum encontrarmos pessoas que se perguntam sobre o sentido de estudar História, “essas coisas que aconteceram a tanto tempo”. Gostaria de lhe provocar a pensar se realmente existe “a História”, caro leitor. Calma, não se trata de um exercício de especulação filosófica que irá caminhar para a ficção! A questão que quero levantar com você, é: o que aprendemos nos livros e nos meio de comunicação, ou mesmo nas produções acadêmicas, é “a história”? Se a sua resposta foi sim, sinto em decepcioná-lo, o que está no livro não é “a História”, mas sim, uma versão, uma interpretação, a partir de fontes históricas e de escolhas feitas pelos autores, ou seja, um recorte da História. Pretendemos, neste pequeno texto, falar um pouco sobre a História de nossa jovem capital (Goiânia), e a partir dessa história, questionar sobre o que aprendemos e não aprendemos da história, refletindo um pouco sobre como esse aprendizado pode influenciar no olhar que temos no presente , sobre quem somos e nas expectativas que produzimos. Você é nosso convidado para uma viagem sobre as primeiras décadas de formação da nossa cidade que vai começar com um trecho de um poema....
...A luz crepita em Goiânia e os botecos da Vila Nova têm gargalhadas do tamanho das feridas dos operários que construíram as marquises do Centro Administrativo e foram exilados para além do plano attiliano...
Chaveiro2007, O sovaco da estátua do anhanguera,in: Goiânia, travessias sociais e imagens cindidas)
As palavras do poema do geógrafo Eguimar Chaveiro nos leva a uma viagem reflexiva sobre a cidade por meio das marcas deixadas nas pessoas e no concreto que constitui a cidade. Mas o poema parece também subversivo, como se provocasse uma história a “contrapelo” na perspectiva do filósofo Walter Benjam. No poema, são as risadas nos botecos em um tempo presente que remetem a um tempo passado, onde operários, moradores da Vila Nova ( e porque não dizer do “bota fogo de baixo”, como era conhecia a região) tiveram o corpo marcado durante a construção da cidade.
As trajetórias destes “outros pioneiros” nos parece significativas para pensarmos uma ampliação da história da cidade. Já que existem contribuições importantes como a do historiador Itami Campos, no texto
Mudança da Capital: uma estratégia de poder, nos mostrando a construção da cidade como estratégia de poder de Pedro Ludovico Teixeira para enfraquecer os Caiado na disputa entre as oligarquias, é preciso dizer que “tem mais gente nessa História”. Ora, foram muitos os que migraram para a construção da cidade, carregando trajetórias e expectativas nesta cidade nova de fronteira, (como define o historiador Luís Sérgio Duarte da Silva), na periferia capitalista. Contudo, se o tempo histórico é uma construção, ou reconstrução do passado, a partir do olhar do presente, permeado por expectativas de futuro, este tempo está preso a um tempo humano biológico: nós morremos! Indivíduos morrem, gerações morrem. Não nos perturbemos muito com a tragédia existencial humana!(como se isso fosse possível!!Está claro que trata-se de uma afirmação retórica). Pedro Ludovico morreu em 1979, antes mesmo de poder retornar a legalidade política, pouco antes da anistia, mas continuou vivo na memória histórica, nas pesquisas acadêmicas nos livros, assim como na história ensinada nas salas de aula. Mas e aqueles que não estavam na direção política do Estado? E os homens e mulheres que levantaram as casas nas margens do córrego botafogo ou na fazenda macambira? Será que a construção da cidade também não gerou tensão entre estes e os idealizadores da nova capital, tensão que foi silenciada pelos anúncios do progresso?
Quantas questões podem ser levantadas sobre esta “cidade nova de fronteira”. Quem foram os construtores desta fronteira? Que processo foi construído nos encontros entre aqueles que vivenciaram a fronteira? Melhor seria dizer as fronteiras: Bairro popular, Vila Nova, Setor Ferroviário, Setor Pedro Ludovico.
Ao conversar com antigos moradores, em um trabalho desenvolvido com a TV da UFG, encontramos pessoas que se autodenominavam “jagunços de Pedro Ludovico”. Encontramos também pessoas que foram compradas pelo “gato”,uma espécie de capataz dos coronéis que agenciavam trabalho escravo para as fazendas, e, neste caso, buscavam migrantes sem recursos que acabavam de chegar a Goiânia e estavam devendo os donos das pousadas que eram aliciadores. Poderiam ser casos efêmeros, que, por meio da memória de alguns não carregariam a credibilidade de processos coletivos. Mas as entrevistas seguintes revelaram o contrário.
O mesmo acontece com “um jagunço” conhecido tanto por moradores da Vila Nova como do Setor Pedro Ludovico, como o homem do jipe preto, “capataz do doutor Pedro”, o Luisão, que derrubava os barracos dos ocupantes que não tinham autorização do Estado para construir. É identificado como aquele que autorizava ou não a construção de novas casas nos bairros. Histórias de barracos que pegaram fogo e de muita violência são narradas pelos moradores antigos. Os relatos são lembranças associadas a lugares, ruas, praças, igrejas, espaços do bairro, contribuindo como uma base material comum onde eles vivem ainda hoje e talvez, por isso, permaneça tão forte em suas lembranças. Trata-se de “práticas humanas objetivadas” - a construção da cidade - e revelam a tensão na fronteira, de tantas fronteiras: econômicas, políticas, psicológicas, na periferia do capitalismo....trajetórias de outros pioneiros... uma cidade que não está nos livros.
Fernando Viana Costa
Historiador, professor, documentarista, Mestrando em História -UFG e militante do MUP - Movimento Universidade Popular.