Dimerval Felipe da Silva, 63 anos, campineiro de nascimento, celebra este ano 50 anos de atividades musicais. É um dos maiores músicos brasileiros. Mas, se perguntarem no meio artítico quem é esse tal Dimerval, ninguém saberá responder. Perguntem então por Bororó. Todos os grandes nomes da música popular brasileira sabem de quem se trata. Bororó não só é estimado pela pessoa humana que é como admirado e exaltado pelo músico fabuloso que sempre foi.
Em geral, não gosto de exceder-me em lisonjas, detesto babação de ovo, mas, em se tratando de Bororó, não há como regatear encômios. Por tudo que ele já fez e faz deveria ser condecorado, glorificado, tratado com a deferência que só se deve a um par do Reino. Mas, nesta terra de cegos, de surdos e de ignorantes, artistas do nível de um Bororó são quase sempre relegados a planos inferiores.
Mesmo assim este rapaz, que recebeu na infância o apelido de Bororó, e fez do apelido seu nome próprio, ainda teima em aqui permanecer depois de ter encantado platéias em todos os continentes. Teima em aqui permanecer e fazer de sua arte uma bandeira de defesa das ricas tradições culturais de Goiás, de elevar o nome do nosso Estado, de cantar e de exaltar sua terra e sua gente. Vira e mexe Bororó é chamado ao Rio ou a São Paulo para tocar seu contra-baixo ou seu violão em show de algum figurão da MPB, ou para colocar seu som em alguma gravação de artistas do primeiro time.
Com tanto reconhecimento lá fora, ele ainda está por aqui por que considera seu dever pomover os novos talentos. Sócio em um pequeno estúdio, Set up Music, vem produzindo discos de músicos goianos ignorados pela grande mídia e pelo grande público, um terreno onde impera soberana e impune a espúria e nojenta música dita “sertaneja”, um lixo sonoro que não passa de intolerável afronta à boa e honrada música caípira, impropriamente chamada “sertaneja de raíz”.
De Campinas para o mundo
Os pais de Bororo se mudaram para Belo Horizonte, Minas Gerais, quando ele ainda era muito criança, e filho único. O pai era violonista profisisonal. A mãe tocava acordeon. O menino cresceu ouvindo música ao vivo. “Eu odiava música, porque queria dormir e a família ficava tocando o tempo todo, em casa”, recorda Bororó. Quando ficou mais grandinho, um irresistível impulso o levou a brincar como violão do pai. E assim, brincando, ele foi aprendendo. E tanto aprendeu que, numa data que ele guarda até hoje na memória, 24 de dezembro de l964, se apresentou em público. Menino imberbe, mal começando na adolescência, Bororó já estava tocando em conjunto de baile.
Começou num conjuntinho chamado “The Mad”, depois foi para “Os Turbulentos”, onde também tocava Flávio Venturini, um dos fundadores do “14 bis”. Logo ele foi conhecendo outros músicos. Uma de suas amizades era Eli, o atual baterista e “cantor do Roupa Nova”, que brilhava no “Impactos”. Foi amigo de todos aqueles rapazes que, mais ou menos naquela época, estavam formando o Clube da Esquina. O Clube da Esquina foi, sem dúvida, um dos mais importantes movimentos de revitalização da música popular brasileira.
“Nas horas vagas, nos intervalos dos ensáios, eu me exercitava em outros instrumentos”, conta Bororó. Acabou baterista por nove anos em conjunto de baile. Depois, passou para o contra-baixo, que ele considera “o instrumento da minha vida”. Assim, Bororó foi, primeiramente, baixista. Na sequência, violonista, guitarrista, baterista, tecladista...
No final da década de 60 Bororó volta para Goiânia. Eram tempos de efervecência cultural. Tempos de festival universitário, de muitas boates, de muitos clubes em cujos salões a meninada dançava de rosto coladinho ao som de incríveis bandas, os “conjuntos” formados por músicos locais. Bororó começou no “Tropical Sunset”, de Paulo Magalhães. Depois foi para o lendário “Aquários Seven”, no qual permaneceu por muitos anos. Essas bandas, que foram grandes escolas, não existem mais.
O festival secundarista da canção, o histórico “Comunicason” de Arthur Rezende e Lorimá Dionísio, o “Mazinho”, estimulou a moçada a compor. Surge daí toda uma geração de músicos talentosíssimos compondo melodias e escrevendo letras da mais alta qualidade. A música criada pela geração formada pelo Comunicason é de uma extrema riqueza cultural à espera de ser descoberta pelos próprios goianos.
A música ao vivo começou, em Goiânia, a ganhar prestígio e público na segunda metade dos anos 70. Os shows altamente politizados de Itamar Correia no DCE da UFG, seus concertos no Inacabado da AGT, eram concorridíssimos. Mas foi nos barzinhos que a música ao vivo realmente despontou para a glória. Bororó seria um dos primeiros músicos de bares em Goiânia, naquele esquema consagrado por João Gilberto: banquinho e violão. Este locutor que vos fala perdeu as contas de quants vezes foi ouvi-lo no Chafariz Chopp, na Praça Universitária. Também o vi algumas vezes, contra-baixo em punho, mandando brasa nas domingueiras do Clube Cruzeiro do Sul, reduto do roque pauleira que se fazia em Goiás.
Bororó liderava uma turma que compunha e tocava: César Canedo, Nasr Chaul, Carlos Ribeiro, Sílvio Barobosa, José Eduardo, Fernando Perillo e João Caetanto. Depois do Chafariz, foi animar as noitadas do Sirius Chopp. Lá tinha um pequeno palco, onde era possível fazer shows mais elaborados. Bororó tocava contra-baixo, apoiando os cantores que se apresentavam. O Sirius, quase na Praça Tamandaré, logo virou o ponto da rapaziada, reduto da orla boêmia da esquerda. A intelectualidade local ali se reunia em tetúlias infindáveis. O renascente movimento estudantil frequentava o lugar. De suas mesas, entre um chopp e outro, a nova geração de ativistas transformava a sociedade e decretavam o fim da ditadura militar. A ditadura estava sem eus estertores, os grandes artistas brasileiros estavam todos empenhados em enterrá-la.
O palco do Sirius Chopp viveu momento de raro esplendor quando recebeu, em curtíssima temporada, Sérgio Ricardo e Thiago Mello, com o espetáculo “Faz escuro mas eu canto”. Numa dessas apresntações – eu estava lá e vi – Bororó deu uma canja, acompanhado Sérgio Ricardo. Ele, Sérgio, ficou fã de Bororó naquele mesmo instante. Num certo sentido, foi Sérgio Ricardo que levou Bororó para o Rio de Janeiro.
Sérgio Ricardo ainda está por aí. Músico de vanguarda, foi do primeiro time dos compositores enganjados contra o regime militar. Cantor, pianista e violonista, foi parceiro de Glauber na trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Como esquecer dos versos insolentes e desafiadores: “Te entrega, Corisco!/ Eu não me entrego não/Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão?/ Só me entrego na morte, de parabelum na mão”. Há uns cinco ou seis anos atrás ele recebeu um prêmio pela trilha sonora que fez para o filme “O lado certo da vida errada”, de Otávio Bezerra. O parceiro dele neste trabalho foi, claro, Bororó.
Antes de se mudar para o Rio, Bororó ainda ficou por aqui. O Sirus fechou, mas o Zero Bar, também na Praça Tamandaré, assumiu o posto de novo templo da boa música e da intelectualidade anhanguerina. Onde meu amigo Paulinho de Assis, grande pianista, ao me ver entrar, ataca de “Canção do Sal”, de Milton Nascimento, uma das minhas prediletas.
Depois de ter tocado com todo mundo e em todo lugar na província, Bororó achou-se preparado para fazer a praça do Rio de Janeiro. Um pouco inseguro no início, logo estaria plenamente à vontade. Três meses depois de se instalar na eterna capital cultural do Brasil, já estava tocando com grandes nomes da MPB e gravando nos principais estúdios do país. É extensa a lista dos banbas com quem ele tocou e excursionou pelo Brasil e pelo mundo, tendo se apresentado até no festival de Jazz de Montreaux. Começou tocando com Beth Carvalho. Acompanhou Edu Lobo, Ivan Lins, Dori Caymmi, Gal Costa. Participou de discos de Chico Buarque, Milton Nascimento, Zeca Baleiro... por aí vai. Uma de suas mais gratas experiências foi a viagem que fez pela África, com uma turma que incluía Darcy Ribeiro, grande antropólogo, um dos maiores escritores do Brasil, intéprete da nacionalidade. Bororó megulhou na música africana, emebeu-se de nossas raízes.
Outra experiência marcante na vida dele foi sua passagem por Cuba. Conviveu com músicos cubanos, inclusive com Pablo Milanez. Tudo isso fez dele não só um músico que carrega uma rica bagagem cultural, mas um artista consciênte de seu papel no mundo e das responsabilidades que, como artista, tem para com sua terra, seu povo.
Bororó não desapareceu totalmente de Goiânia. Vira e mexe, ele dava pinta por aqui. Numa dessas, anos 80, ele atendeu a chamado de Braz Pompeu de Pina para ajudá-lo na fundação da orquestra sinfônica do Estado de Goiás. E lá estava o sambista, roqueiro e jazzista Bororó, de smoking, tocando baixo-acustico, com arco, sob a regência do mastro Braz no palco do Teatro Goiânia. Bororó sempre curtiu música erudita, sendo pronfundo conhecdor das obras de clássicos brasiloeiros: Villa Lobos, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe, Radamés, entre outros. Mas o que ele gosta mesmo é de Tonico do Padre, o lendário compositor barroco que viveu em Pirenópolis nos tempos do império, cuja obra foi redescoberta por Braz. Bororó, que também compôs uma peças na linha erudita, está preparando um disco instrumental em que, além de suas própíras composições, recria coisas deixadas pelo Tonico do Padre. Aguardemos.
Bororo e os kalungas
A comuninade quilombola Kalunga foi descoberta no final da década de 70, a antropóloga goiana Mari Baiocchi, da UCG – hoje PUC Goiás – foi a grande responsável pelo descobrimento. Os jornais começaram a escrever a respeito. Bororo leu uma dessas reportgens e teve curiosidade. Ele, que é filho de pai baiano e se orgulha de sua ancestralidade africana, foi às pirambeiras do nordeste goiano conhecer a comunidade. Queria, primordialmente, saber que tipo de músicas os kalungas faziam por lá.
Bororó é um incansável pesquisador de música primitiva, também chamada de étnica, ou folclórica. Entre os kalungas, Bororo fezcamaradagem, se enturmou como pessoal, sempre que pode volta à região. A música Kalunga, segundo Bororó, constitui-se de cantos imemoriais acompanhados ao violão e ao pandeiro. Mas é um violão de corda de aço, com uma afinação anti-convenional, que os próprios kalungas inventaram. Também inventaram eles um estilo totalmente original de tocar pandeiro. Ao som dessas cantigas, eles dançam a Susa.
Dessa longa convivência nasceu o disco “Kalunga”, que deverá ser lançado comercialmente em breve por uma gravadora carioca, a Fina Flor. O disco já está todo gravado, mixado e masterizado. Falta apenas ser prensado e colocado à venda.
Bororó não faz música kalungueira, é bom adiantar. A música dos kalungas é sua fonte de inspiração. Ele se serve de elementos dessa música para desenvolver seu próprio trabalho. É uma obra de síntese. As musícas foram compostas por Bororó, que em duas delas teve como parceiro seu amigo Gustavo Ribeiro. As letras são de Carlos Ribeiro, um dos mais inspirados letristas goianos. Todos os intrumentos foram executados pelo próprio Bororó. Mas ele não canta. As vozes são de Janaina Felipe, a caçulinha do compositor, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil, Zeca Baleiro, Paulinho Moska e Sérgio Ricardo. Todos eles amigos de Bororo, que aceitaram o convite para participar do disco sem cobrar cachê.
Poderão alguns dizer que se trata de um disco “autoral”, expressão pedante e alienada que entrou em moda na nossa imprensa. Trata-se, na verdade, de um disco “experimental”. Eu prefiro dizer “conceitual”. Cogita-se de um álbum com marcante unidade temática e sonora, que tem a pretensão, justa, de passar uma ideia. Um discurso-manifesto, poderíamos dizer também. Um disco que, indo além do requinte e do bom gosto musical, situa-se no plano do discurso político. Bororó quer chamar a atenção para a realidade das comunidades quilombolas e exaltar a contribuição dessas comunidades à cultura brasileira. É isso que faz de Bororó muitomais do que o virtuose que ele inegavelemte é. É isso que faz dele um artista enganjado, comprometido com o progresso social e cultural de nossa gente. Por isso a arte que ele faz é honesta e honra o povo a que ele pertence.