Assim como a linha é capaz de desenhar através de pontos e espaços, o corpo também pode bordar trajetórias, caminhadas e sentimentos. Tem potencial até para contar histórias sob a ótica de um dos nomes mais interessantes da literatura brasileira: João Guimarães Rosa. Pelo menos é isso o que acontece no espetáculo de dança contemporânea O Crivo, uma coreografia de João Paulo Gross, que será reapresentada hoje, às 20 horas, no Teatro Sesi. Uma de suas intenções é de buscar neologismos através do corpo em movimento.
Este espetáculo estreou ano passado e já esteve em grandes eventos de dança contemporânea, a exemplo do Paralelo 16, em Goiânia, e do Festival Dança em Trânsito, no Rio de Janeiro. E em breve vai ganhar o Brasil, graças ao Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2015.
O Crivo trata-se de um dueto, no qual João Paulo Gross, ao lado do bailarino Daniel Calvet, coloca no palco um espetáculo intenso e cativante. Do escritor mineiro, o coreógrafo inspirou-se em três contos presentes em Primeiras Estórias”, de 1967: “Terceira Margem do Rio”, “Nada e a Nossa Condição” e “O Espelho”.
O clima seco e empoeirado do sertão, presente na obra de Guimarães Rosa, é ressaltado pelo figurino de Flora Maria e na iluminação do coreógrafo e um dos fundadores da Quasar Cia. de Dança, Henrique Rodovalho. É claro que, a partir do universo do autor de Grande Sertão: Veredas, o coreógrafo criou as próprias questões por cores, texturas e também sons.
Como trilha escolheu valsas brasileiras de Villa-Lobos, Francisco Mignoni e Rachel Grim, e a música da natureza também entra em cena. Por outro lado, a teatralidade dos movimentos do espetáculos mostra a capacidade cênica da dança contemporânea de desbravar e entender mundos distantes e complexos. A partir da história de todos, a dança se individualiza, e ao tornar-se tão íntima, consegue alcançar a universalidade.
ENTREVISTA JOÃO PAULO GROSS
Ele é mineiro, assim como João Guimarães Rosa, e as semelhanças com o escritor não param por aí. João Paulo Gross sempre foi completamente inspirado pela literatura. Além de bailarino e profissional requisitado (além de bailarino da Quasar é professor da Giro 8 Cia. de Dança), é mestre em poética pela UFRJ. Por isso, movimento e escrita sempre se cruzam nos seus espetáculo. Foi assim em Terreiro e é assim em O Crivo. “É como se eu quisesse escrever no linóleo as imagens que surgem pra mim quando um livro, um poema, um conto me provocam. E esse momento de descoberta é tão intenso que eu geralmente faço as coreografias sem música”, disse o artista, que, em entrevista ao Diário da Manhã, contou um pouco mais sobre O Crivo, inspirações e o atual momento da dança contemporânea. Veja a conversa abaixo.
DMRevista: O Crivo é como se fosse uma coreografia dos sentimentos que desperta em você a obra de Guimarães Rosa?
João Paulo Gross: Guimarães Rosa é para mim um escritor que criou uma língua própria, um jeito de dizer que vai na oralidade brasileira. Os temas são simples, mas de uma complexidade absurda. Fala-se do homem, desse sertão que está para além da geografia; é aquilo que está dentro de nós, nossa essência originária, a vida que pulsa e reverbera criando modos de existir e conviver. É uma leitura bem particular e ao mesmo tempo universal. Quem não conhece vale a pena adentrar nesse universo tão rico e tão brasileiro.
DMRevista: Por que escolheu estes três contos de “Primeiras Estórias”?
João Paulo Gross: Primeiras Estórias é um livro muito complexo, pois estudando os contos eles têm relação entre si na sua geral do livro como um todo. Os contos são independentes, começam e terminam, mas você percebe e encontra outros contos que refletem questões abordadas em outro conto. O fato de ter escolhido três contos para nos inspirar não foi aleatório. Eles trazem um carga poética muito grande e inspiraram todas as relações estabelecidas na dramaturgia, na construção do corpo e toda a estrutura cênica para que o movimento pudesse fluir e dialogar na sua plenitude.
DMRevista: Como o crivo, que é um tipo de bordado, pôde complementar a temática do espetáculo?
João Paulo Gross: A ideia do bordado é bem simples, o nome é uma forma de homenagear essas artesãs e o trabalho tão rico e tão característico do Brasil. E na sua imagem só percebemos o bordado, pois ele possui o vazio, os espaços vazios entre um ponto e outro é que possibilita eu ver a força e a amarração da linha. Assim é um paralelo que busco relacionar com a relação estabelecida entre os intérpretes que constroem a relação através de forças e tensões que se dão pelo movimento para se conhecerem e entenderem a travessia.
DMRevista: Na condição de bailarino e coreógrafo, como vê atualmente o cenário da dança contemporânea em Goiânia?
João Paulo Gross: Está um cenário bem rico e efervescente. Goiânia tem curso técnico de formação para bailarino, licenciatura em dança, além dos grupos e coletivos que se formam para produzir e articular danças na cidade e região. Temos festivais importantes como o Paralelo 16, o Manga de Vento–Mostra Expandida de Dança, Festival Internacional de Dança, aqui na cidade que tem reverberação nacional. Cada festival tem sua característica e demanda e atende a diversos públicos. São de extrema importância, assim como os mecanismos culturais que ajudam a viabilizar os projetos para a cidade, o Estado e o Brasil. Goiânia tem muita gente bacana e batalhadora na área da dança. Estamos na luta para abrir e expandir mais espaços e difundir a dança como um todo.
DMRevista: Você, que é ainda professor e bailarino da Quasar, já tomou alguma decisão quanto ao futuro da companhia?
João Paulo Gross: A Quasar Cia de Dança terá uma parceria com o governo do Estado de Goiás para a sua manutenção. Esses trâmites estão em negociação e acreditamos que no primeiro semestre de 2017 a companhia volte ao seu trabalho continuado diário. Estamos felizes com essa possibilidade e garantia para que a Quasar possa alçar novos voos.