O cantor e compositor cearense Belchior (1946-2017) ganhou status de ídolo dos corações e percepções movidos pela revolta nas últimas décadas. Anarquista de carteirinha, conforme foi atestado em entrevista concedida ao Jornal Pasquim na década de 1980, as músicas do trovador faziam referência a emancipação do ser humano, e é possível encontrar referências ao músico norte-americano Bob Dylan e ao poeta irlandês Dylan Thomas em suas composições.
“Nada é divino, nada é maravilhoso”. Belchior soube como pouquíssimos cantar as dores naqueles momento em que não sabemos diagnosticá-las, mas temos noção clara do que deveras sentimos. No primeiro punhal de amor traído, no destino das inevitáveis partidas e na mais dolorosa sensação de estranheza, sempre há de ter uma balada do disco Coração Selvagem, de 1977, ou Alucinação, de 1976, na agulha da vitrola (ou nos serviços de streaming).
Bem, após essa breve introdução, vou me ater ao que importa: você poderá atenuar sua saudade do trovador cearense em breve graças a uma produção audiovisual que deve ser do papel. Isso porque a história do rapaz latino-americano será contada no longa-metragem Belchior – Amar e mudar as coisas, filme que foi aprovado pela Agência Nacional do Cinema para ser produzido pela Clariô Filmes. Os recursos foram captados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e a estreia será no canal Curta!.
Com direção de Natália Dias, o documentário leva o nome de uma das canções mais famosos do músico, que faz parte do clássico Alucinação, e indica ao espectador qual será o fio que irá conduzir a história: contar histórias por meio das obras mais marcantes de Belchior, com imagens de arquivo e depoimentos que o músico concedeu em diferentes momentos de sua carreira.
A cereja do bolo fica por conta das falas de amigos e admiradores ilustres do artistas, como Elba Ramalho, Erasmo Carlos, Fafá de Belém, André Midani, Zeca Baleiro, Hermeto Pascoal, Toquinho, Gilberto Gil, Ney Matogrosso e, é claro, Fagner.
Sólida formação
Apesar de forte ligação com a literatura, o cantor Belchior dedicou-se mesmo à música. As letras de suas canções revelam sólida formação intelectual e trazem à tona fragmentos de poetas e romancistas brasileiros e estrangeiros. Utiliza temas musicais brasileiros, como Apenas um rapaz latino-americano, onde cita Divino Maravilhoso, composição de autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Outras referências são Happiness I as Warm Gun e Assumo Preto.
Para expressar suas ideias, Belchior assumiu um estilo bem peculiar. Com um jeito de cantar rasgado, marca registrada do trovador cearense, as músicas tratam do espaço urbano com finalidade única de incomodar o ouvinte, fazendo com que ele reflita acerca das questões que são abordadas em suas composições. Em função disso, sua inserção nas grandes meios de comunicação foi dificultada e Apenas um rapaz e Não leve flores, ambas do disco Alucinação, foram censuradas pela Ditadura.
Outra característica importante é a temática da América Latina. Tal escolha discursiva fica evidente nas baladas A Palo Seco, de 1974, e Voz da América, lançada em 1979. Também temos contato na obra de Belchior com a posição do nordestino ao chegar ao Sudeste, como vemos em Conheço o Meu Lugar, de 1979 e Fotografia 3x4, de 1976.
Sua crítica ácida e mordaz ainda atingiu a estética vigente no período. "Nossos ídolos ainda são os mesmos (...) Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém", canta o artista no hino Como os Nossos Pais, do álbum Alucinação.