Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, quem posteriormente tornou-se Cora Coralina, nasceu na antiga Villa Boa, agora, Cidade de Goiás, no dia 20 de agosto de 1889, na Casa Velha da Ponte, às margens do Rio Vermelho. Aninha cursou apenas até a terceira série do curso primário, conquistou o afeto de Carlos Drummond de Andrade e consolidou-se como figura aclamada na história de Goiás.
Apesar de escrever desde a adolescência, o primeiro livro veio apenas em 1965, intitulado Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, lançado aos 76 anos. Seus textos intimistas de temática cotidiana e provincial, compõem uma extensa obra ainda não completamente divulgada, embora muitas de suas relíquias estejam presentes em sua casa, agora museu que preserva sua memória.
O pseudônimo "Cora Coralina", que assinou as obras da escritora, foi escolhido porque na cidade de Goiás havia muitas “Anas”, em homenagem à padroeira local, Sant´Ana. Ela explicava que “Cora” vem de coração e “Coralina” significa a cor vermelha, Cora Coralina seria coração vermelho, daí surgiu o nome da poeta.
A escritora, que além de poeta tornou-se doceira, ficou amplamente conhecida por sua afinidade com a culinária, ofício com o qual ganhava a vida. Entre os anos de 1965 a 1979, Aninha começou a fabricar doces e a comercializá-los. Pessoas de várias partes do país visitavam a casa de Cora para comprar suas guloseimas e também, ouvi-la declamar poesias, contar “causos”.
A literatura de Cora Coralina decolou para além dos limites interioranos e seus versos despertaram a atenção de grandes escritores, como Drummond, que inclusive, em 1979, trocou correspondências com a poeta. O poeta não a conhecia, mas havia tomado contato com sua obra. A carta é reproduzida na orelha de seus livros, editados pela Global Editora. A partir disso, ele tomou para si a tarefa de apresentar Cora ao Brasil.
Rio de Janeiro, 14 de julho de 1979.“Cora Coralina. Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu Carlos Drummond de Andrade”.
"Minha querida amiga Cora Coralina:
Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que
não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e
comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência
humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com
as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós
todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).
Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento
e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em
condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga!
Obrigado, também, pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para
mim e que guardarei na memória do coração.
O beijo e o carinho do seu
Drummond."
Andrade, Carlos Drummond de [Rio de Janeiro, 7 out. 1983]. Carta de Drummond. In: Coralina, Cora. Vintém de cobre : meias confissões de Aninha. 4. ed. p. 23.
Cora Coralina, de Goiás.
“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.
Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando musica de sereias antigas e de Dona Janaína moderna
Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada.
Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:
“Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito”. “Vive dentro de mim/ a mulher proletária. / Bem linguaruda, / desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/ a mulher da vida. / minha irmãzinha... / tão desprezada, / tão murmurada...”.
Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto(“Leves e verticais. Jamais sofisticadas. / Seguras nos seus calços / de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. / sou o cocho abastecido donde rumina o gado. / sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor.”.
Assim é cora coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os bonecos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referencia especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Ás vezes, ia de empréstimo / à casa da boa Tia Norita. / E era certo no centro da mesa/ de aniversário, com sua montanha / de empadas bem tostadas / No dia seguinte, voltava, / conduzido por um portador/ que era sempre o abdenago, preto de valor, / e, melhor cheirinho / de doces e salgados. / tornava a relíquia para o relicário...”.
Relicário é também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina. Remontando a infância, não a ornamenta com flores falsas: “éramos quatro as filhas de minha mãe. / entre elas ocupei sempre o pior lugar”. Lembra – se de ter sido “triste, nevorsa e feia. / Amarela de rosto empalamado. / de pernas moles, caindo à toa”. Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendia. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.
Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na sua solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial da editora, em época de festas. A obra foi publicada pela universidade federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecermos critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.
Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo”. Opõe a morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”.
Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira."
Carlos Drummond de Andrade
Sua representatividade na literatura goiana não se condiciona aos comentários do grande Drummond, mas é preciso ressaltar o impacto de seus versos para além das fronteiras do centro-oeste, onde Aninha, de Villa Boa, arrebatou os sentimentos dos amantes de poesia com a sensibilidade e singeleza de sua prosa poética.
Mulher da Vida
Mulher da Vida,
Cora Coralina
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.
Mulher da Vida - o título do poema - é uma nomenclatura informal, pejorativa e antiga para se referir a prostitutas. Entretanto, ao invés de lançar sobre essas mulheres um olhar contaminado de preconceito e distanciamento, o que o eu lírico faz é sublinhar a comunhão que estabelece com ela. Embora situadas em distintos espaços, a relação tecida entre o eu lírico e a personagem é identificadas a partir do que têm em comum, a união e percepção de gênero, logo, o fato de serem mulheres.
Ao expressar "minha irmã", o eu lírico destaca o que há de empatia e senso de união entre as duas
Meu Destino
Nas palmas de tuas mãos
Cora Coralina
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…
Divergente da efemeridade moderna, Meu Destino é, antes de tudo, um poema de um bem sucedido e duradouro relacionamento. O amor é manifesto de forma leve e fácil, amor de interior. Os versos são um retrato da vida antes, durante e depois do encontro com o parceiro.
Considerações de Aninha
Melhor do que a criatura,
Cora Coralina
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos.
Debruçando sobre o questionamento da existência humana, em Considerações de Aninha, Cora utiliza da pessoalidade para manifestar as dúvidas que pousam sempre, na mente humana em alguma parte de nossa insignificante jornada pela vida. A pessoalidade presente em grande parte de suas obras, estreita os limites entre autora e obra, aproximando-nos de seu interior.