Júlia Lee
Feminismo. Substantivo masculino. “Doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade”, segundo o dicionário. Movimento político pela libertação das mulheres das amarras do patriarcado, o feminismo é liberdade sobre nossos corpos e vidas.
Uma luta incansável contra estupros, objetificação, desvalorização social, miséria, oportunidades desiguais, com recortes raciais e de classe. O feminismo é a chave para a porta da igualdade social, e consequentemente igualdade de escolha sobre o próprio corpo. Quiçá chegamos ao ponto de compreender que precisamos de saúde mental, amor próprio e empoderamento para resistir contra o que a sociedade machista nos impõe. Inclusive, depilação.
O conceito estético de que mulheres devem ser completamente depiladas toma a indústria cultural novamente no século XXI. A depilação feminina começa a ser datada por historiadores na Grécia Antiga, através da análise de esculturas da época, que demonstravam apenas homens com pelos nas genitais, o que já era considerado padrão de masculinidade.
Após a Revolução Industrial e com as mulheres trabalhando em fábricas, os vestidos perderam as mangas pelam necessidade de mover os braços, e as axilas peludas - algo tão íntimo e sexual à época - era visto como impróprio. A consequência foi a remoção dos pelos para ser considerada uma moça “de família”.
Eis que em 1930 surge no mercado cremes depilatórios e aparelhos de depilação como produtos necessários dentro do consumo diário feminino. Algo reforçado brutalmente pela publicidade da época. Já a imposição cultural da depilação das pernas e partes íntimas foi decorrente da evolução da moda, que começava a revolucionar o cenário dos anos 1960 com biquínis e roupas que mostravam as pernas.
Em contrapartida, entre 1960 e 1970, a discussão sobre a naturalidade dos pelos em mulheres tomou o movimento hippie e as feministas, sendo o primeiro indício de luta contra essa indústria cultural. Em 2019, cada vez mais mulheres ao redor do mundo levantam a bandeira contra a obrigatoriedade da depilação, mostrando seus lindos pelos pelo mundo, se orgulhando da naturalidade dos corpos.
É o caso da fotógrafa e ativista feminista, Marcela Guimarães, criadora do projeto fotográfico “Mulheres Adultas Têm Pelos”. O Diário da Manhã teve o prazer de entrevistá-la.
Confira a entrevista na íntegra:
Diário da Manhã - Quando começou seu projeto fotográfico Mulheres Adultas Têm Pelos?
Marcela Guimarães: Iniciei o projeto em março de 2018, quando fotografei a primeira mulher. O processo de criação durou 1 ano e 2 meses, e em junho de 2019 lancei o zine online, junto do perfil no Instagram.
DM - Porque você escolheu falar de pêlos femininos?
Marcela: A vontade de falar sobre esse assunto surgiu de uma inquietação pessoal. Sou de uma cidade muito quente no interior de São Paulo (Fernandópolis), 35 graus em média o ano inteiro. Por conta disso, a única opção é estar sempre de short/saia, o que nos leva a ideia de estar com a depilação sempre em dia.
Mas acontece que eu nunca consegui tal fato, pois sentia muita dor com a cera, suava frio mesmo quando ia depilar, e a gilete sempre me deu alergia. Então eu acabava por usar calça jeans e passava muito calor.
Com o tempo fui refletindo e amadurecendo essa inquietação, até que cheguei na ideia da “Mulheres Adultas Têm Pelos”, um espaço de conversa, escuta e registro de outras mulheres que estavam passando pelo mesmo processo que eu, de questionamento sobre a cultura da depilação.
DM - Qual sua posição política sobre o ato de não se depilar?
Marcela: Acabei de completar um ano sem me depilar, só aparo a virilha e a axila de vez em quando. Particularmente, acho que cada mulher deve fazer o que quiser com seu corpo. Acho urgente e necessária a conversa sobre esse assunto para que isso dê liberdade para que cada mulher descubra de qual forma se sente mais à vontade com seu próprio corpo e assim decidir o que fazer e quando fazer.
Eu entendo as estruturas que mantém o mercado da depilação e estética num geral, e a gente sabe que vai um bom tempo pra desconstruirmos esses rituais (isso se conseguirmos algum dia), mas meu objetivo com o projeto não é militar para que ninguém mais se depile, é apenas mostrar que é perfeitamente possível que pessoas adeptas da depilação convivem tranquilamente com pessoas não adeptas.
DM - Com o seu projeto, o que você percebeu sobre como as pessoas reagem ao fato de mulheres não se depilarem?
Marcela: A primeira questão que levantam é a falta de higiene. Depois falam que não é natural, que mulher não têm pelos. Aí depois vem o argumento de que queremos enfiar esse assunto goela a baixo e fazer uma ditadura da não depilação.
Há uma grande dificuldade em geral das pessoas verem alguém fazendo algo diferente do que nos foi ensinado como "normal" e ficar sem pegar isso pra si, só ver, identificar que é diferente e falar "ok, beleza, próximo". Aqui em São Paulo ainda é menos pior, as pessoas estão acostumadas com o "diferente" a todo momento, é uma cidade com muita diversidade. No interior a recepção é outra coisa. Sempre tive este questionamento comigo, mas só fui ter coragem de assumir meus pêlos depois que vim morar aqui.
DM - Através dos relatos que você recebeu, qual chamou mais sua atenção?
Marcela: Que eu me lembre agora, o que eu fiquei mais em choque ao ouvir foi um da Amanda Buttler de quando ela era bem criança e raspou os pelos do braço - braço mesmo, não axila - com uma gilete depois de um comentário de algum colega da escola. É muito louco como essas normas e regras grudam no nosso imaginário desde muito novas. A gente cresce com essas ideias e reproduz sem saber exatamente o que é aquilo, sem refletir ou questionar.
Eu acredito no debate e diálogo com pessoas adultas, quando essas estão abertas a pensar e mudar comportamentos, claro, mas acho que precisamos dedicar energia também para a educação das crianças e adolescentes. Elas carregam uma potência transformadora e que muitas vezes não temos dimensão do quanto.