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A poesia desejosa de Hilda Hilst

Consagrada pela crítica especializada, Hilda Hilst (1930-2004) é considerada uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. Tornou-se uma poeta, dramaturga e ficcionista conhecida por transitar entre diferentes tipos de texto sem perder a dicção estética que lhe é própria, produzindo, no limiar das fronteiras entre os gêneros, uma excêntrica literatura. Hoje, a estudante de letras e pesquisadora de sua obra Vitória Carvalho analisa poemas pela ótica feminina.

Muito antes de estrear na ficção com Fluxo-floema (1970), dedicou boa parte da sua vida à poesia. Os anos de 1950 a 1970 foram marcados por uma vasta produção poética, desde a publicação de Presságio (1950) à publicação de Sete cantos do poeta para o anjo (1962).

IAflição de ser eu e não ser outraAflição de não ser, amor, aquelaQue muitas filhas te deu, casou donzelaE à noite se prepara e se adivinhaObjeto de amor, atenta e bela.Aflição de não ser a grande ilhaQue te retém e não te desespera.(A noite como fera se avizinha)Aflição de ser água em meio à terraE ter a face conturbada e móvel. E a um só tempo múltipla e imóvelNão saber se se ausenta ou se te espera.Aflição de te amar... se te comove.E sendo água, amor, querer ser terra.IIÉ meu este poema ou é de outra?Sou eu esta mulher que anda comigoE renova a minha fala e ao meu ouvidoSe não fala de amor, logo se cala?Sou eu que a mim mesma me persigoOu é a mulher e a rosa que escondidas(Para que seja eterno o meu castigo)Lançam vozes na noite tão ouvidas?Não sei. De quase tudo não sei nada.O anjo que impulsiona o meu poemaNão sabe da minha vida descuidada.A mulher não sou eu. E perturbadaA rosa em seu destino, eu a persigoEm direção aos reinos que inventei.(HILST, 2018, p. 90-91).

Ao negar as formas da tradição já no título (Sonetos que não são), fica evidente o posicionamento da poeta: revisitar a tradição lírico-amorosa, em um duplo movimento de aproximação e afastamento. Adotar esse tipo de atitude lírica, dialogar com a tradição e assim renová-la, no caso de Hilst, envolve não só questões de ordem literárias, mas também sociológicas, de modo que a poeta, ao questionar seu lugar enquanto sujeito lírico, questiona, também, o seu lugar no mundo como mulher.

Uma problemática está ligada a outra: fazer literatura ‘feminina’ implica falar de um lugar social muito particular. Não há uma escrita designada pelo sexo biológico. Não há uma ‘essência feminina’ que determine uma escrita dócil, inefável e piegas, tampouco uma ‘essência masculina’ que determine uma escrita mais comedida e racional e, por isso, superior à literatura feita por mulheres.

À mulher não é dado o pleno reconhecimento de sua individualidade, falta-lhe a alteridade necessária em um mundo onde um sexo domina e oprime o outro. Hilda Hilst soube manejar muito bem essa problemática, por uma feminização temática que se realiza durante toda a extensão dos sonetos.

A eu lírica deixa claro, desde o início, a angústia de se saber amada, e de contestar uma espécie de eterno feminino socialmente atribuído a ela e o qual chamará de Outra ("Aflição de ser eu e não ser outra" e "É meu deus este poema ou é de outra?"). Funda-se um paralelismo entre o 'eu', o sujeito que ama, e a 'outra', expressão do eterno feminino, a fim de o contrapor na aflição mesma de ter de corresponder aos estigmas da feminilidade.

Além disso, são evocadas imagens relativas a movimento e fluidez, como “a face conturbada e móvel”, em uma "Aflição de ser água em meio à terra", de modo que a água aparece como representação da voz lírica, na angústia de se sentir fadada ao devir-mulher, representado, agora, pelo elemento terra e referente a certa estabilidade com a qual se sente obrigada a corresponder ("E sendo água, amor, querer ser terra").

No segundo soneto, intensificam-se as relações com sua outra oposta, se confundindo com os desígnios do eterno feminino ("É meu este poema ou é de outra?"). Está lançada a questão primordial: sou eu esta mulher ou quem se espera que eu seja? Sou, afinal, a outra e, sendo a outra, sou meu contrário? É versando sobre si que a voz do poema versa sobre o amor.

Hilda se atém e persegue a ideia de plenitude do amor, não hesitou em pensar a conjuntura histórica e material dos anos de 1950, em que a ideia de totalidade para grandes temas como o amor foi perdida. Não há um Amor puro e absoluto, mas um entendimento fragmentário da experiência amorosa, em um mundo pós-guerra, onde as certezas são cada vez mais frágeis.

Hilst, na tessitura do texto poético, repensa tradição, amor e mulheridade. Uma lírica do entre-lugar, que se fez moderna pelo diálogo estabelecido com a tradição, em um processo de encontro e desencontro com ela.

Texto: Vitória Santos Carvalho (FL/UFG)

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