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A subjetividade na construção narrativa de 'A menina, o coração e a casa'

Neste domingo, a professora e mestranda em Estudos Literários, Kelly Fonseca realiza uma análise da obra de María Tereza Andruetto "A menina, o coração e a casa". Acompanhe:

Em meio a efervescência das já finalizadas comemorações do dia das crianças, quero comentar brevemente sobre um livro de literatura infanto-juvenil intitulado, A menina, o coração e a casa, da professora e escritora argentina María Tereza Andruetto, publicado em 2017 e traduzido no Brasil por Marina Colassanti.

A menina, o coração e a casa apresenta a história de Ernestina, mais conhecida como Tina, que no tempo da narrativa, possui cinco anos. Essa personagem vive com a avó Hermínia e o pai na cidade fictícia de Cineville, embora mantenha uma relação de apego à casa onde sua mãe mora juntamente com o seu irmão, a menina demonstra controle dos seus sentimentos nos primeiros capítulos, e ao decorrer da narrativa compreende a situação familiar de maneira mais ampla, assim como os seus sentimentos.

A romancista argentina lança mão de algumas estratégias narrativas a fim de prender a atenção do leitor na vida cotidiana da menina. Situará a personagem principal em seu seio familiar. Um ambiente que se tornou onipresente na maioria dos textos infantis. Porém, Andrueto retoma esse tipo de relação humana de forma mais complexa e não genérica. Tina que mora com seu pai e avó paterna, visita a mãe e o irmão aos domingos, sendo essa a maneira, como a menina é apresentada em Aldo. O narrador, metaforicamente, irá desnivelar sutilmente a condição dos pais de Tina, uma vez que nada está dito diretamente, mas tudo ainda será revelado.

A literatura não nos leva à simplificação da vida, e sim à sua complexidade, evitando o pensamento global, uniforme, para ir em busca da construção de um pensamento próprio.(Maria  Tereza Andruetto)

A linguagem da obra é marcada pelo tratamento poético feito pelas descrições das condições familiares, que são reveladas gradativamente ao leitor. Há a presença da focalização interna do narrador pela memória (fixa, variável ou múltipla) a qual o narrador diz apenas aquilo que a personagem Tina sabe, os fatos são narrados a partir do ponto de vista dela que está inserida na história. Desse modo, a quantidade e qualidade dos elementos informativos é limitada ao conhecimento da personagem que detém a função de localizador.

A narrativa da obra se atenta primeiramente, na descrição do vilarejo fictício Aldo, e da cidade, também fictícia, Cineville. Primeiramente, é como se o narrador fosse uma câmera, que percorreu todo o vilarejo até chegar à casa de Tina, em uma tarde de domingo, e focalizou na menina. Todo esse movimento de contar e recontar a história de Tina, também é marcado na descrição das mudanças sociais e econômicas que acarretaram ao bucolismo dos espaços e das cidades, e das relações de trabalho dos personagens adultos e da população.

O texto possui os diálogos de Tina marcados pela configuração textual no modo itálico, sem recuo muitas vezes no texto, e sem a presença de travessões. Toda essa configuração da obra está combinada com as descrições melancólicas do espaço da casa da mãe (Sílvia), de Tina, do povoado e da cidade.

No decorrer da leitura, é perceptível a melancolia, através das indagações internas de Tina, do porquê ela precisa viver separada de sua mãe e de seu irmão: Tina nunca saberá o que pensa ou o que deseja sua mãe nesses momentos, só sabe que, quando crescer, não quer ser assim. “Que quando crescer, se tiver uma filha, por nada desse mundo ela se criará em outra casa que não a sua. Sabe disso desde pequena, bem pequena mesmo”. (ANDRUETTO, 2017, pág. 29)

Sendo assim, a narrativa de Maria Teresa Andrueto está sim localizada em um patamar de literatura não destinada apenas ao público infantil. A palavra é dada a uma criança de cinco anos, a sua identidade é formada pela tomada de consciência de sua realidade. A menina, o coração e a casa é uma obra belíssima, simples e carregada pelo silêncio que significa o que não pode ser dito a uma criança. O não dito ganha vida pela perspectiva de uma criança que significa e ressignifica as suas primeiras experiências afetivas.

“Essa menina que corre até seu pai se chama  Tina.

Um dia crescerá.

Catará uma agulha do chão e no buraco, maior que um camelo, enfiará os fios da sua vida, a história da sua mãe e da sua avô, e talvez também a da avó da sua mãe. Fará com elas um novelo que contenha até a última mulher que abandonou ou foi abandonada.

As que conhece, e as que perderam na noite dos tempos.” (Andruetto, 2017)

Texto: Professora Kelly Fonseca. Graduada em Letras e Pedagogia, atualmente mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística ─ UFG.

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