Na década de 1970, o cantor e compositor goiano Odair José, 71, ficara conhecido como ‘rei das empregadas’ por conta de músicas do calibre de “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, “A Noite Mais Linda do Mundo”, “Pare de Tomar a Pílula” e “Na Minha Opinião”. O músico, no entanto, rechaça esse rótulo e não pensa duas vezes: “quem chama meu trabalho de brega ou é mal informado ou mal intencionado”, afirma. Faz sentido. Em 1977, Odair lançara a ópera-rock “O Filho de José e Maria”.
Com letras que questionavam a moral cristã daqueles anos de ditadura civil-militar (1964-1985), o disco mais experimental da carreira do goiano contava a história de um cara de 33 anos que tinha vários dilemas morais. Claro que uma história cheia de referências a Jesus Cristo – e suas descobertas sexuais – não ia passar despercebida pelo público. Tanto que quando o álbum chegou às lojas a vida do cantor mudou: ninguém queria contratá-lo para shows, muito menos comprar “O Filho de José e Maria”.
A partir de então, a carreira de Odair entrara em queda acentuada. O disco voltou a ser tocado ao vivo apenas na década de 2010, quando a obra foi lançada ao vivo. O artista, contudo, decidiu chutar a mesa: o ambicioso trabalho foi relançado nesta semana pelo selo Polysom como parte da série “Clássicos em Vinil”, com a justificativa de que a narrativa do álbum é conceitual e seu repertório autoral contesta dogmas cristãos.
Essa constatação fica evidente em todas as músicas de “O Filho de José e Maria”. “O Casamento”, por exemplo, questiona o sagrado matrimônio e insinua que Jesus Cristo teria sido concedido antes de José e Maria se unirem. É, sobretudo, uma transgressão, pois Odair dá a entender que o nascimento de Jesus foi por meio de relação sexual, quebrando as leis de Deus. Como era de se esperar, a igreja ameaçou o cantor de excomunhão e, é claro, criticara o disco.
Óbvio que a ópera-rock seria boicotada nos meios de comunicação para evitar embate com os defensores da moral cristã. E sem exposição midiática, uma coisa era certa: “O Filho de José e Maria” amargaria pífias vendas, algo inédito na história da indústria fonográfica, já que o artista tinha emplacado um sucesso atrás do outro nos anos 70. Mesmo com toda a expressividade de quem tem habilidade para compor boas músicas, a carreira do goiano afundou e ele nunca mais tocou nas rádios.
Em entrevista ao Diário da Manhã concedida em agosto deste ano, Odair José avaliou a importância do disco para a música brasileira e disse que seu trabalho sempre foi falar de temas tabus. “O Filho de José e Maria”, ao ser lançado em 1977, foi visto como uma verdadeira loucura. O mundo inteiro falou mal e disseram que a minha carreira artística havia acabado”, afirmou, na ocasião. “O meu trabalho sempre foi falar de temas que vão de encontro às necessidades do momento em que estou vivendo”.
Censura
Pouca gente sabe, mas o cantor Odair José foi o que teve mais músicas censuras pela ditadura civil-militar. Foi o líder – no quesito mordaça – de uma turma que tinha na linha de frente Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e tantos outros nomes. Odair, digamos assim, possuía predisposição à subversão. Ouça estes versos de “Vou Morar com Ela”, de 1971: “O meu amor/ foi aumentando/ cresceu demais/ e uma hora por dia/ já não resolve mais/ quando fico sozinho/ me desligo de tudo”.
Eram versos que desprezavam o casamento enquanto instituição e, portanto, afrontavam os censores. Dois anos depois, a consagração de Odair José aconteceu por vias ortodoxas. “Você diz que me adora / que tudo nessa vida sou eu / então eu quero ver você / esperando um filho meu / pare de tomar a pílula/ porque ela não deixa nosso filho nascer”, dizia a letra de “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”. A música batia de frente com um programa de distribuição de anticoncepcionais.
Não deu outra: censurada. 1973 ainda ficaria marcado para Odair José como o ano em que ele tentaria se aproximar das elites, aos moldes do que Caetano tentaria fazer em 1968 gravando autores como Vicente Celestino. Ao lado do cantor baiano, Odair subiu ao palco do festival Phone 73 para apresentar sua “Vou Tirar Você Desse Lugar”, onde o eu-lírico da canção assumia sua paixão por uma prostituta e prometia tirá-la do puteiro. Claro que o autor de “O Casamento” sofrera uma sonora vaia no Anhembi.
No livro-reportagem “Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar”, Odair diz que vinha falando de temas que geravam desconforto nos militares. “O que rolava antigamente na música popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do luar”, diz o músico ao jornalista Paulo César de Araújo. “E eu vim falando de cama, de pílula, de puta, de empregada doméstica, porque essa é a realidade do Brasil”, analisou.
Saiba mais
‘O Casamento’
Odair José alfineta com gosto a moral cristã: “Sacristão/ Quem são essas pessoas Sacristão?/ Vamos, diga-me/ Já se passa da meia-noite/ Vamos, diga-me”
‘Não Me Venda Grilos’
Tire suas próprias conclusões: “Mudar de vida para te amar/ Seu nome tem meu nome/ Seu corpo traz meu filho/ Por certo eu sou seu homem/ Mas não me venda grilos/ Oh não, não, porque/ Viver já pesa muitos quilos/ Viver, viver”.
‘Que Loucura’
E Odair termina desta forma: “Essa foi a minha historia/ Mas bem que podia ser a de vocês/ Um problema todos os dias/ Mais um trauma chocante uma vez por mês/ Olha eu era tão menino/ E ninguém teve dó/ Olha eu era tão menino/ E ninguém teve dó”.
Ficha Técnica
‘O Filho de José e Maria
Autor: Odair José
Gênero: Ópera-rock