Imagine você tocar em Woodstock, ao lado de bandas como The Who e Crosby, Stills & Nash. Imagine você colar nas baladas de Los Angeles com Grace Slick, Jim Morrison e Jimi Hendrix. Imagine, agora, em plenos estertores dos anos 70, você viajar na lisergia de uma das cidades mais boêmias do mundo, onde fervilhava uma verve criativa descaralhante.
Imaginou?
Pois é, a musa da contracultura, Janis Joplin, trilhou esse caminho e não esboçou nenhuma reação contrária a ideia. De fato, o paradeiro de Janis era uma cidade no hemisfério sul, cantada pela Bossa-Nova, filmada pelo Cinema Novo e eternizada em crônicas de Antônio Maria e nos versos de Carlos Drummond. Nada convencional pra quem quer sossego.
Saca só: naquele início dos anos de 1970 rolavam episódios intensos no Rio de Janeiro. E uma galera de ponta da cultura brasileira morava, criava, namorava e vivia a cidade. Vejam de quem este escriba chinfrim fala, senhoras e senhores: Glauber Rocha, Tarso de Castro e uma infinidade de malucos que dariam pra preencher laudas e mais laudas.
Dona de voz potente, visceral e expressiva, Janis não quis fugir das drogas se enclausurando numa clínica hollywoodiana, e optou por buscar a limpeza no Carnaval carioca há 50 anos. Provavelmente, o que deve ter pesado na escolha da cantora foi o fato de que no Rio não havia - ainda - heroína, apenas beque, ácido e álcool - muito álcool, na verdade.
Era uma sexta-feira, dia 6 de fevereiro de 1970, véspera da folia, quando a rainha do rock desembarcou na Cidade Maravilhosa. A data completa meio século nesta quinta-feira (6). E, portanto, sejam bem-vindos à musa da contracultura e à mulher que cantou suas dores com tanta, tanta, tanta emoção que até hoje sua voz levemente rouca faz a cabeça de muita gente.
Sem dúvida, nessa altura Janis já era uma estrela e tinha impressionado o público e a crítica com dois discos feitos com a banda Big Brother and the Holding Company. O segundo, “Cheap Thrills”, de 1968, conquistara o topo nas paradas de sucesso. “Combination of the Two”, faixa que abre o álbum, ganhou notoriedade no filme “Medo e Delírio em Las Vegas”, em 1998, adaptação do clássico da contracultura de Hunter S. Thompson.
A cantora e sua estilista, Linda Gravenites, fizeram check-in no Copacabana Palace assim que desceram no Aeroporto do Galeão, mas quase ninguém ali pareceu se dar conta de quem se tratava. Um deslize imperdoável, embora facilmente justificável: o Brasil vivia nestes dias sob a tensa batuta da ditadura e personalidades como a cantora não eram, digamos, tão bem aceitas pelos paladinos da moral e dos bons costumes.
Mesmo assim, a epopeia da roqueira no País Tropical teve de tudo: apresentações improvisadas em botecos de quinta, inclusive num puteiro baiano, brigas, confusões, sexo e bebedeira, muita bebedeira. A cantora norte-americana experimentou encontros sentimentais, selou amizades e viveu um grande amor - fato que pôs o Brasil definitivamente em sua biografia, e foi retratado no documentário “Janis: Little Girl Blue”, de Amy Berg.
A chegada da musa ao Rio ainda foi contada em “Copacabana Palace - Um Hotel e Sua História”, livro-reportagem do jornalista Ricardo Boechat. É desses dias em que a musa permaneceu no ‘Copa’ suas maiores lendas em solo brasileiro. Como, por exemplo, a de que ela teria sido expulsa da piscina do glamouroso hotel por nadar nua.
Chorando nas areias da praia, sem saber o que fazer, desesperada, Janis encontrou o fotógrafo Ricky Ferreira, integrante da Rolling Stone brasileira, versão pirateada da americana, nos anos 70. “Soube que ela estava no Copacabana Palace, corri para lá, mas quando cheguei ela e a amiga tinham acabado de ser expulsas”, contou Ferreira, em entrevista à Rolling Stone, no ano de 2018.
Ele, é óbvio, não pensou duas vezes e ofereceu pouso para as duas em seu quarto e sala, no Leblon. Janis, porém, travava Linda a ponta pés, e ela não segurou a barra e foi embora. “Se mandou em dois dias”, relatou o fotógrafo à revista.
Na nova casa a loucura seguia em ritmo frenético. Janis bebia todas, fumava tudo, chegando a dormir com um cigarro na boca, o que quase provocou um incêndio no apartamento. Por essas e por outras, o clima entre a cantora e a estilista era desgastado. “Tinham momentos que ela parecia uma garotinha meiga, mas de repente virava um motorista de caminhão”, recordou-se o fotógrafo, que pretende rodar um filme sobre a estadia da roqueira no Rio, na ocasião.
Mas as aventuras de Janis no Brasil não pararam por aí. Houve tempo ainda para ela perambular pelo interior da Bahia, tomando ácido, cantando, transando, amando… Janis, de fato, curtiu o Brasil, e muito!
Mas, de repente, enquanto boto estas linhas no papel, ocorre-me o seguinte: o que faria hoje a musa da contracultura se resolvesse vir pra essas bandas tropicais?
São tantas perguntas, para múltiplas respostas.
Certamente, ela aproveitaria para dar um pulo no famigerado bloco Planta na Mesa ou num slam na Praça XV, no Rio.
Arrisco a dizer ainda que ela, é claro, como não ir à Cidade Maravilhosa e esquecer de passar por lá, não é mesmo?, daria rolês pela Lapa, sentaria nos botequins, conservaria com malucos, beberia a boa e velha cachaça carioca, ave, rapaz, deu até água na boca do repórter-cronista.
Vida real, eis a vida real, sempre...
Pena que há essas fatalidades e nem tudo é como uma crônica, não é mesmo?
Exato, porque oito meses depois de Janis explorar o Brasil com uma vibe deliciosamente beatnik, ela saiu de cena. A cantora foi encontrada morta em 4 de outubro de 1970, aos 27 anos. Detentora de um talento emocionante, de uma voz roucamente doce e um estilo único, Janis vive no coração de jovens que ainda insistem em sonhar, amar e viver.
No final das contas, a arte é sobre isso. E nada mais.