A nouvelle vague mudou a cara do cinema mundial na década de 1950, certo? Cineastas como Jean-Luc Godard e François Truffaut revolucionaram a sétima arte. Mas, sendo a história quase sempre narrada a partir do ponto de vista masculino, a importância da fotógrafa Agnès Varda é ofuscada por Godard e Truffaut, e poucos imaginam que ela realizou sozinha, com cenário natural, na cidade de Sete, um longa-metragem audacioso: "La Pointe Courte", de 1954, alternava sequências documentais e cenas literárias, com dois atores amadores de teatro (Philippe Noiret e Sylvia Monfort).
Quatro anos depois, como reação às produções hollywoodianas, o "cinema de autor" proposto pela nouvelle vague se tornara mundialmente conhecido. Seus principais representantes eram jovens amantes de cinema com espírito crítico que escreviam na revista Cahiers du cinèma ("cadernos de cinema", em tradução livre), publicação idealizada pelo teórico André Bazin e ainda hoje considerada - embora esteja passando por sufocamento financeiro, é bom lembrar - uma referência à crítica cinematográfica. Cansados de tanto resenhar, Godard e companhia limitada colocaram a mão na massa e produziram os seus filmes.
No ano seguinte, Claude Chabrol fizera um bom pé de meia e Truffaut havia sido premiado em Cannes pelo longa-metragem "Os Incompreendidos". Com o prestígio nas alturas, os dois foram atrás do produtor Georges de Beauregard a fim de convencê-lo a bancar o primeiro filme de Godard, que era o crítico mais mordaz, furioso, corrosivo e cáustico da Cahiers du cinèma. "Vai ser a história de um rapaz que pensa na morte e de uma garota que não pensa", definiu Truffaut, após ler uma notícia no jornal. E foi: nascia, então, a premissa de uma das obra mais filosóficas, mais sociológicas e mais reflexivas da nouvelle vague.
Ok, "Acossado" - filme que completa 60 anos neste mês - quebrou o paradigma das estrelas: Jean-Paul Belmondo interpretou o protagonista e a americana Jean Seberg a personagem principal. A história é simples: Michel Poiccard, um jovem de 26 anos, rouba um carro, fura uma blitz e mata um policial. Em Paris, ele vai atrás da estudante americana Patricia Franchini, que é vendedora do jornal New York Herald no calçadão da Champs Élysées. Apaixonado, porém sem grana, sai à procura de alguém que lhe deve uns trocados. Seu nome e sua foto estão estampados em todos os jornais que circulam pela capital francesa.
Filme
As cenas filmadas espontaneamente nas ruas parisienses, sem permissão das autoridades, são genialmente admiráveis, mas o ritmo imagético do longa é caótico. Em dada altura do filme, a agitação provocada pelas ruas finda, e o espectador é convidado a mergulhar no interior da relação do casal. Na cena mais extensa - que tem 27% da duração -, Michel e Patricia duelam verbalmente no pequeno quarto de hotel dela. Ali, Godard foi a fundo: o amor pode ser um porre, sem futuro, uma coisa chatérrima, mas a beleza muda tudo, dando gás para seguir em frente em meio ao mal-estar intrínseco à civilização.
De certo modo, a trilha sonora composta por Martial Solar, músico de jazz nascido em Argel, faz uma ode à Paris, antecipando em mais de dez anos o que Bernardo Bertolucci faria em "O Último Tango em Paris" - guardadas, naturalmente, as devidas proporções: o diretor italiano induziu uma atriz a uma cena de sexo anal, que ficou conhecida como 'a cena da manteiga', e esse episódio à luz do século XXI é terrível. "Acossado" é um clássico do cinema, com uma estética que mostrou a possibilidade de ir além dos padrões impostos pela indústria hollywoodiana, revelando que a linguagem cinematográfica é, de fato, uma arte.
A obra-prima de Godard vai além da percepção de que o cinema precisa ficar trancafiado no estúdio. Em pouco mais de uma hora e meia de filme, o diretor mostra é que necessário o contato direto com o mundo real. Se ele contestava o velho estilão dos States durante a época em que foi crítico na Cahiers du cinèma, não foi diferente quando pegou a câmera para dirigir. Por essas e por outras, “Acossado” abre caminho às mudanças pelas quais a sétima arte passaria nos próximos anos. Embora tenha ofuscado o reconhecimento de cineastas como Agnès Varda, caramba, Godard é responsável pelas melhores cenas já vistas. E como é.
Ficha Técnica
‘Acossado’
Autor: Godard
Duração: 1h
Gênero: Drama
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