Charles Bukowski era um bêbado profissional, mas nem todo bêbado é profissional ou é um Bukowski: pode até existir um ou outro cachaceiro com registro no Ministério dos Alcoólicos, essas coisas do tipo, de gente que atravessa a madrugada na folia etílica, porém dá para contar nos dedos da mão esquerda quantos deles acordam naquela ressaca kafkiana e escrevem um poema do gabarito de "O Amor é Um Cão dos Diabos". Imagine se um porra-louca desses, de fato, ia querer fazer qualquer esforço literário com a cabeça pulsando a sinfônia da breja de dois reais.
Alcoólatra, rebelde, briguento, desbocado. A fama que o escritor Charles Bukowski acumulou durante a vida está documentada em boa parte de sua obra, publicada no Brasil em versão de bolso pela editora L&PM. Ali o velho safado conta a partir de seu alter-ego Henry Chinaski como foi a experiência nos Correios, relata como era a condição da classe trabalhadora norte-americana no contexto pós-crise de 29, rememora sua infância e como ele foi vítima dos colegas de escola por ter bastante espinha no rosto. E, por fim, confessa suas aventuras com mulheres na sociedade americana dos anos 70.
A poucos meses essa figura completa um um século, a ser comemorado no dia 16 de agosto deste ano. Nascido na cidade de Andernach, na Alemanha, Buk era filho de um soldado americano e de uma jovem alemã. Foi levado muito cedo para os Estados Unidos, onde passara a infância em meio à pobreza de Los Angeles, lendo os clássicos da literatura russa e rabiscando um verso ou outro. Apenas na década de 1940, o velho safado conseguiu publicar sua primeira história: "Consequências" rendeu ao escritor alguns trocados, mas ele seguia passando por dificuldade financeira. E continuava escrevendo.
"Bukowski via a si mesmo como um seguidor dos passos de John Fante no esforço de reivindicar igual ou maior importância do que qualquer outro centro literário dos Estados Unidos", escreve na introdução do livro "Pedaços de Um Caderno Manchado de Vinho" o escritor David Stephen Calonne, amigo do velho safado. Bukowski, para citar uma definição do poeta Claudio Willer, é "o mestres das variações sobre o mesmo tema". De certo modo, os livros dele sempre têm briga de bar, discussões com mulheres, descrições de transas, empregos deprimentes e hospitais públicos horrendos.
Na década de 1960, o humor ferino do escritor e suas cenas escatológicas passaram a ser relatadas em jornais alternativos da califórnia. Foi nesta época também que Bukowski abandonou o emprego nos Correios e passou a se dedicar à literatura, escrevendo o romance "Cartas na Rua" (1971) em 15 dias. Depois da primeira obra, vieram "Factótum" (1975), "Mulheres" (1978), "Misto-Quente" (1982), "Hollywood" (1989) e "Pulp" (1994) - todos eles foram publicados no Brasil pela L&PM. "Comecei a escrever romances porque não tive escolha", disse Buk, numa entrevista, nos anos 80.
Reputação
Desde os anos 70, quando aparecera entrevistas em revistas como a Rolling Stone e Interview, o mito em torno de Charles Bukowski aumenta a cada coletânea de poesia que é lançada. Fora dos Estados Unidos, o Brasil é o País onde a obra de Bukowski mais parece ter durado, com mais de 20 traduções. Por aqui, é comum ver jovens - que estejam começando a tomar gosto pelo hábito da leitura - com um exemplar dos livros do velho safado. E não é para menos: a escrita seca, com frases diretas e humor corrosivo despertam para toda uma geração a literatura do dia a dia, isto é, a do cotidiano massacrante do capitalismo.
Na obra dele, é possível encontrar de tudo: ensaios ("Pedaços de um Caderno Manchado de Vinho" fala sobre os principais autores que influenciaram Buk), romances ("Cartas na Rua", "Factótum", "Mulheres", "Misto Quente", Hollywood" e "Pulp"), contos ("Escrever Para Não Enlouquecer") e poemas ("O Amor É Um Cão dos Diabos"). Em todas os livros, o leitor tem contato com um lado novo da literatura ultra-realista de Bukowski, responsável por retratar com singularidade a derrocada do estilo de vida norte-americano imposto ao mundo após a Segunda Guerra Mundial.
De certo modo, os escritos do velho safado (amado e odiado) é um atento para quem deseja saborear um texto transgressor, que fala sobre a vida como ela é, sem o rompante dos acadêmicos. Sim, ler Bukowski é - antes de tudo e sobretudo - gargalhar com a desgraça da natureza humana, se revoltar contra a mesquinharia do capitalismo e, principalmente, se reconfortar num texto ácido o bastante para nos fazer crer que ainda há esperança para a porra toda. Charles Bukowski é, e sempre será, o cronista mais fiel da decadência do estilo de vida do Tio Sam.
Para conhecer Bukowski
'Cartas na Rua'
O escritor abandona o trampo nos Correios para se dedicar à literatura. É o primeiro romance de Bukowski.
'Factótum'
Crônica corrosiva sobre o capitalismo norte-americano e, consequentemente, sobre a condição degradante de trabalho.
'Mulheres'
Mais tarado dos livros de Bukowski, o romance começa assim: "há cinco anos eu não ia para a cama com nenhuma mulher". E ao longo dos capítulos, o leitor é tocado por vários relacionamentos, conturbados ou não, de Bukowski. Precisa falar mais?
'Pedaços de um Caderno Manchado de Vinho'
Aqui o leitor verá uma faceta, digamos assim, mais intelectualizada do velho safado. A obra é constituída por ensaios que falam sobre literatura, estética e arte.