Angela Ro Ro estava predestinada a virar freira, mas não teve jeito, e lhe restou apenas se render ao blues, às biritas e às mulheres. A meio caminho entre Janis Joplin, Nina Simone e Maysa, a cantora foi pioneira em assumir que era homossexual num Brasil careta comandado pelos fardados. Sua obra é versátil, passeia pelo samba-canção dor de cotovelo e transita com desenvoltura pela bluseira dilacerante e as derivações do gênero, como rhythm ´n´blues, rock e jazz. A cornitude da chanson francesa de Jacques Brel e a música de prostíbulo alemã eternizada por Kurt Weill compõem a seleta musicalidade da cantora carioca.
As letras de Ro Ro retratam uma persona intensamente boemia e declaradamente lésbica. Questões amorosas são abordadas de maneira rasgante e com humor corrosivo. No disco “Angela Ro Ro”, clássico da música de fossa brasileira lançado em 1979 pela Polygram, a cantora apresenta uma identidade dramática e sensual que remete o ouvinte às músicas de Maysa, parodiando-a a partir de recursos que vão da risada escrachada ao estado de embriaguez etílico e sonoro. Com a rainha suprema do samba-canção, gravara a canção “Demais”, onde atualiza o perfil maldito de sua predecessora ao mundo pós-moderno.
Ro Ro passou a ser reverenciada pelo blues “Amor, Meu Grande Amor”, parceria sua com a compositora Ana Terra, que faz parte do lado A do LP “Angela Ro Ro”. “Amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada”, diz a musa da cortinute da boêmia carioca. A voz aguda da cantora é acompanhada por um riff de guitarra e por um piano que não deixam nada a desejar ao som da norte-americana Etta James. No outro lado, a faixa “A Mim E A Mais Ninguém” - com as frases de guitarra bebendo na melhor tradição da bluseira americana - fala sobre amores rasgantes, sentimentos cortantes e paixões avassaladoras.
“Eu sei que o tempo vai passar, e as coisas vão ficar, porque acredito em mim, e o tempo passa a flutuar, e a chance de eu ficar, depende só de mim”, canta Ro Ro. Haja dor, haja lirismo, haja amor! No entanto, o álbum mais vigoroso da primeira fase da carreira da cantora é o LP “Escândalo”, lançado em 1981 pela gravadora Polygram no selo Polydor Records. A primeira música vai no caminho dos estilos presentes em “Só Nos Resta Viver”, de 1980, e “Angela Ro Ro”, do ano anterior. “Eu quero uma cruz de pinho selvagem, alguma bebida pra me dar coragem”, diz a cantora na segunda estrofe de “Perdoai-os Pai”.
Na sequência, vem o groove levemente suingado de baixo de “Came e Case”, que Ro Ro assina letra e música. “Esse tempo, pouco, louco de amor... Que você me dá, que você me dá... Que nem dá pra prestar muita atenção...”, declama a cantora. A música segue a mistura avassaladora entre o samba-canção de Maysa com a pegada blues de Janis Joplin. Em seguida, o triunfo do disco: “Escândalo”, de autoria de Caetano Veloso, canção que parece ter sido escrita sob medida para a cantora. O lado A do LP finaliza com “Na Cama”, um clássico blues harmônico. “Por dentro do vestido, eu guardo um corpo infernal”.
As notas baixas, típicas do blues, duram pouco mais de três minutos. Na primeira faixa do lado B, o riff de guitarra de “Vou Lá No Fundo” anuncia o universo da safadeza noturna do início dos anos de 1980. “Vou lá no fundo, sou vagabundo, meu preço é caro, mas vem que eu te quero”, berra a cantora, acompanhada de backing vocal. Já “Perco o Rumo” é em baixa intensidade sonora, mas a letra segue na premissa da dor de cotovelo. “Fico louca, tiro a roupa, me aqueço, não te esqueço”. Na terceira música, “Fraca e Abusada” dispensa a matéria-prima do blues e do samba-canção, dando lugar a um sambão clássico carioca.
O disco caminha para o fim com uma canção guiada pelo piano de Ro Ro. Os versos, cheios de lirismo, leveza e elegância, falam sobre liberdade. “Já estou solto passarinho, juro vou te soltar também, abra as asas pequenino, eu abro também”, diz a cantora, com um agudo em vibrato, no refrão. “Mistério”, a última faixa do disco, vai pelo mesmo caminho: “que mistério é esse, que você tem, que quando você sofre, eu não passo bem, minha boca que eu amo, eu mordo até sangrar”, declama, numa voz leve, suave, sem esforço e bastante natural. De fato, “Escândalo” é um dos grandes clássicos da rainha do blues brasileiro. Basta.
Ficha técnica
‘Escândalo’
Autora: Angela Ro Ro
Gênero: Blues e samba-canção
Gravadora: Polygram
Disponível nas plataformas de streaming