O Brasil ficou mais triste, mais sombrio, mais demente. Saiu de cena na madrugada desta segunda-feira (13) vítima de infarto do miocárdio o cantor, compositor e letrista Moraes Moreira, um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira (MPB). A morte de Moraes, fundador dos Novos Baianos e um dos responsáveis pelos discos “Acabou Chorare” (1972) e “Novos Baianos FC” (1973), dois dos mais importantes de nossa música, foi confirmada pelo cantor Paulinho Boca de Cantor, que repassou a informação aos antigos companheiros de Moraes, Pepeu Gomes e Baby do Brasil. Antes de falecer, o cérebro dos Novos Baianos publicou um irretocável cordel falando da quarentena.
“Eu temo o coronavírus/ E zelo por minha vida/ Mas tenho medo de tiros/ Também de bala perdida/ A nossa fé é vacina/ O professor que me ensina/ Será minha própria lida”, escreveu, no Instagram, Moraes. Nos próximos versos do cordel-manifesto, o músico fala sobre misoginia, preconceito, milícia e outras formas de ódio que estão presentes em nosso cotidiano. “Até aceito a polícia/ Mas quando muda de letra/ E se transforma em milícia/ Odeio essa mutreta, pra combater o que alarma/ Só tenho mesmo uma arma/ Que é a minha caneta”, disse o compositor, finalizando: “O que vale é o ser humano/ E sua dignidade/ Vivemos num mundo insano/ Queremos mais liberdade”.
Nascido no dia 8 de julho de 1947, o baiano de Ituaçu Antônio Carlos Moreira Pires, conhecido pelos quatro cantos do Brasil como Moraes Moreira, fazia da juventude dos anos bem vividos de desbunde hippie sua marca registrada. Moraes era fã número um do compositor e violonista inventivo João Gilberto, autor do LP “Chega de Saudade”, obra que mudara os rumos da MPB nos de 1950, com batida de samba carioca misturado ao jazz americano. Sua verve musical miscigenada, que ia do rock and roll à bossa-nova, foi determinante para a composição da sonoridade inconfundível dos Novos Baianos, grupo que formara ao lado de Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Pepeu Gomes, em 1969.
Antes de serem influenciados pela genialidade de João, os Novos Baianos entraram na vibe do rock psicodélico sessentista, que fervilhava nos Estados Unidos com Jefferson Airplane e teve seu ápice em Woodstock, mas que ainda era incipiente no Brasil da ditadura. Aqui, a tropicália agitava o underground, com a poesia de Torquato Neto, com o cinema novo glauberiano e com os LPs “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado” (1970), dos Mutantes, e “Tropicalia ou Panis et Circencis” (1967), espécie de manifesto do movimento. Uma luz criativa se acendera no horizonte e uma energia musical revolucionária impressionaria público e crítica.
Depois do encontro com João e de seguir os conselhos do mestre, Moraes e companhia começaram a fazer história com o segundo disco, “Acabou Chorare” (1972), considerado o melhor álbum da música brasileira, de acordo com levantamento feito pela revista Rolling Stone. O LP mostra a perfeita sintonia musical dos Novos Baianos, misturando rock, samba e choro com a brasilidade jovial daqueles tempos. Se a obra de Moraes fosse restrita apenas aos bons trabalhos que fez com a banda, como “Novos Baianos FC” (1973) e “Novos Baianos” (1974), seria suficiente para colocá-lo no panteão definitivo dos gigantes da nossa música. Acontece, porém, que sua obra em carreira solo também é excelente.
Carreira solo
Moraes já começou fazendo um disco perfeito. “Moraes Moreira” (1975) começa com a música “Desabafo e Desafio”: “Os pés molhados sobre a terra inchuta/ Chupando manga na beira do rio/ Sou natural da gruta/ De mangabeira”, canta Moraes. A segunda faixa, “Guitarra Baiana”, é guiada por um inconfundível solo de guitarra, com uma letra cheia de onomatopeias. Dois anos depois, em 1977, o músico lança o álbum “Cara e Coração”, fazendo sucesso com a canção-título e sua levada delicada. “Mesmo pra quem não conheço/ Mesmo pra quem não merece/ Rezo e ofereço/ Preces/ Não te apresses/ Para!/ Coração repara”, declara o cantor.
No ano seguinte, Moraes fez “Alto Falante”, um dos mais interessantes de sua discografia. A música-título começa com um violão suave e uma letra subjetiva. “Eu tenho no coração uma voz de cristal/ De um alguém para outro alguém/ Com amor e com carinho/ Uma mensagem sonora/ Um grito celestial/ Eu sou um alto falante/ Uma boa noite cordial”, canta Moraes. Mas, mesmo com obras tão boas, o ponto alto de sua trajetória individual viria com “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” (1979), que em seu “Acústico MTV” (1995) explicou como surgiu a faixa que denomina o LP: “De novo João, João adora a noite, né? Ele olhou uma mulata descendo a ladeira e disse: “Olha lá, olha o Brasil descendo a ladeira”'.
Fã de futebol, Moraes Moreira ainda homenageou a Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982, na Espanha. “Futebol e arte/ Que em nenhuma outra parte/ Do mundo não há: Galinho de Quintino/ Flamengo menino/ Grito em forma de hino – Gol!/ Calcanhar de Sócrates/ Gogó de cantor/ Só craque, só craque, só craque, só craques”, diz Moraes, em "Sangue, Swing e Cintura". Mesmo com uma trilha sonora poética dessas, o resultado todo mundo já sabe: o Brasil perdeu para a Itália de Paolo Rossi, numa das tragédias mais dolorosas da história do futebol. O que importa, porém, é o registro da beleza sonora composta pelo fundador dos Novos Baianos como maneira de demonstrar seu amor pelo time de Telê Santana.
Nos anos 2010, Moraes lançou o disco “A Revolta dos Ritmos” (2012) e se juntou ao filho guitarrista, Davi Moraes, no disco “Nossa Parceria” (2015). Houve tempo ainda para reunir-se com os Novos Baianos para sair em turnê pelo Brasil, eternizando a excursão em CD e DVD “Acabou Chorare – Novos Baianos Se Encontram” (2017). No ano seguinte, investiu no cordel brasileiro com “Ser Tão” (2018), seu trabalho derradeiro. Moraes Moreira deixou 20 músicas inéditas. Por essas e por outras, Antônio Carlos Moreira Pires é um dos maiores nomes da MPB. Obrigado, Moraes Moreira!