Pessoas gargalham, fumam cigarros, bebericam um trago de cerveja e quebram o gelo com conhaque. Essa cena parece fazer parte de um passado distante. Faz tempo que era possível ver a galera na rua com cabelo ao vento e com gente jovem reunida. Desde o decreto assinado pelo governador Ronaldo Caiado em meados de março último, a vida noturna goianiense respira com a ajuda de aparelhos, e não há perspectiva de melhora. Está quase morrendo. Bares, restaurantes, lançamentos literários, sessões de cinema, shows no Martim Cererê, espetáculos teatrais e exposições em galerias: tudo parado.
Na última semana, proprietários de bares mobilizaram o público em torno de vouchers para serem usados depois da quarentena. É caso da Casa Liberté, ponto boêmio localizado no Centrão de Goiânia. Aberto há pouco mais de um ano, o estabelecimento surgiu na cena da capital como uma alternativa de resistência cultural e política em meio ao marasmo da região. O espaço se notabilizou por realizar lançamentos de livros, rodas de conversas e feiras de discos, além de shows e discotecagens que valorizam a cena goiana. Mas, desde o mês passado, a Liberté sofreu um golpe.
“Infelizmente, nessa crise os pequenos comércios, como bares, são os primeiros a correrem o risco de fechar em definitivo. Se isso chegar a acontecer, perde o centro da cidade, perde a vida cultural goiana e também perde o ganha pão de algumas pessoas maravilhosas que estão com a gente desde o começo”, lamenta o jornalista Heitor Vilela, 25, idealizador da Liberté. Segundo ele, a campanha de arrecadação virtual está “até então sendo boa”, mas será difícil não fechar o mês no vermelho. “Tivemos quase 3 mil contribuições, a maioria de amigos e clientes cativos, porém não conseguimos bancar as despesas de um mês fechado”.
"Nessa crise os pequenos comércios, como bares, são os primeiros a correrem o risco de fechar em definitivo".Heitor Vilela, idealizador da Casa Liberté
Pelo mesmo caminho vai a Cervejaria Mandala. Situada na Vila Itatiaia, próximo ao Campus Samambaia da Universidade Federal de Goiás (UFG), o espaço atravessa sua pior crise em cinco anos. “Nossa abertura também foi difícil, mas na época nossos desafios eram apenas manter a empresa, administrar e trabalhar com afinco para construir o bar que sonhamos”, afirma a empresária Kamila Moreira, 31, idealizadora do Mandela. E acrescenta, em seguida: “Agora, além de tudo isso, ainda temos o terror de uma questão sanitária de altíssimo risco e um time de governantes completamente empenhados em fracassar”, sentencia.
“Ainda está no começo (a campanha), mas temos percebido um engajamento bem legal. As pessoas estão compartilhando e contribuindo. Algumas dizem que está faltando grana, mas que vão contribuir em breve. As compras podem ser feitas até o final de maio”, explica Kamila. Assim como na Liberté, a campanha encabeçada pelo Mandala consiste num abacash (uma espécie de vaquinha virtual) que varia entre R$ 25 e R$ 100. O voucher, diz a proprietária, é repassado ao bar por uma marca de cerveja, no final da campanha, bonificando o dobro do valor angariado para o bar. “E o cliente consumirá o valor comprado”.
"Temos o terror de uma questão sanitária de altíssimo risco e um time de governantes completamente empenhados em fracassar.”
Kamila Moreira, empresária
No dia 3 deste mês, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, estendeu a quarentena até o domingo (19). O novo decreto, publicado no Diário Oficial do Estado no início de abril, permite a abertura de lanchonetes e restaurantes que já estão instalados em postos de combustíveis localizados às margens de rodovia. Na ocasião, Caiado afirmou que compreende as dificuldades deste período de isolamento social, e disse que buscaria socorro financeiro ao governo federal. Até a publicação desta reportagem, Goiás tinha mais de 200 casos da Covid-19, com pelo menos 15 mortes.
Impacto
Boa parte dos profissionais da economia criativa não possuem vínculos com a CLT. De todos, englobados aí profissionais de moda, tecnologia e mídias, os mais prejudicados são os que atuam na cultura. Pelo País, o impacto da pandemia provocada pelo novo coronavírus será na ordem de R$ 100 bilhões, e especialistas dizem que a maneira mais eficaz de combater a crise é investir dinheiro público no setor. Ao Diário da Manhã, o gestor de projetos com ênfase em cultura e criatividade, Décio Coutinho, explicou que o impacto, em Goiás, será de cerca de R$ 3,5 milhões.
A produtora cultural Malu da Cunha, 54, declara ao DM que o Fórum de Cultura do Estado de Goiás encaminhou para o secretário estadual de cultura, Adriano Baldy, e para o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, um documento em que propõe a liberação de linha de crédito aos artistas que varia de R$ 5 a R$ 30 mil. “Os documentos foram enviados por e-mail para o secretário e o governador”, relata. No entanto, Malu diz que, até o momento, não houve resposta tanto do governador quanto do secretário. A produtora lembra também que “a maioria dos Estados lançaram editais emergenciais”, mas “Goiás não fez nada até agora”.
De acordo com estudo da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape), divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo no último dia 2, 51,9% dos eventos que estavam previstos para ocorrer neste ano foram cancelados, adiados ou estão ameaçados de sequer acontecer. A entidade estima ainda que as perdas giram em torno de R$ 90 bilhões ao contabilizar o prejuízo indireto dos eventos provocados pela estagnação do setor cultural. O João Rock, festival consagrado na cena brasileira e programado para rolar no próximo mês de junho, foi remarcado para o dia 12 de setembro.