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Entenda como a camisa da Seleção se tornou símbolo do bolsonarismo

No dia 21 de julho de 1970, durante partida válida pela final da Copa do Mundo, o lateral-direito Carlos Alberto Torres recebe passe açucarado de Pelé e solta o petardo: 4x1. Com a pancada do capita, a Seleção canarinha botava fim na goleada contra a Itália e sagrava-se tricampeão mundial, o primeiro tri da História. No entanto, mesmo com o deleite provocado pela magia do escrete comandado pelo Rei e seus súditos, eram tempos em que os fardados aterrorizavam dissidentes nos porões da repressão. Enquanto Carlos Alberto levantava a Taça Jules Rimet no México, militantes eram selvagemente torturados nos calabouços do regime.

O ditador Emílio Garrastazu Médici apropriou-se do triunfo da Seleção para promover seu governo. Ainda que não fosse novidade a tentativa ufanista dos militares em usar a imagem da conquista brasileira, a população separava futebol e política. “Nunca permiti que a ditadura roubasse até o que eu tinha de mais íntimo. Segui me comovendo ao ouvir, e sempre cantei, o Hino Nacional, porque era o do meu país, não o da ditadura usurpadora. Já bastava o medo que ela nos incutia”, anota o jornalista Juca Kfouri em “Confesso Que Perdi”. “Eu busquei separar futebol e política”, completa Nirlando Beirão na obra “Meus Começos e Meu Fim”.

Mais de quatro décadas depois, nas manifestações de junho de 2013, ativistas anticorrupção passaram a dominar as ruas com os tons verde e amarelo da Seleção brasileira. Até então, o que predominava nos protestos eram o preto, dos black blocs, e o vermelho, dos partidos que compõem a chamada esquerda institucional. Mas, insatisfeitos com a “pauta globalista”, seja lá o que isso quer dizer, a camisa que brilhara nas Copas do Mundo passou a ser identificada com o slogan bolsonarista “Brasil acima de todos”, que se popularizou durante a campanha eleitoral de 2018, quando o presidente Jair Bolsonaro se elegeu com 55% dos votos válidos.

A associação entre direita e nacionalismo não é nova. Na década de 1960, para efeito de comparação, a esquerda da época, defensora de pautas anti-imperialistas e anti-ditadura, defendia uma espécie de cultura nacional. Já os conservadores, simpatizantes do golpe que destituiu João Goulart da presidência, em 1964, endossavam o discurso religioso, pró-Brasil e contra o comunismo, algo semelhante ao que se viu no cenário pré-impeachment, em 2016. Nesta época, vale lembrar, é que se acentuou a polarização política e a dita nova direita misturou em suas pautas contrárias ao governo de Dilma Rousseff a retórica neopentecostal.

Ex-presidente João Goulart - Foto: Autor Desconhecido

“Integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Civil, Polícia Federal, Gabinete de Segurança Institucional, Agência Brasileira de Inteligência, homens e mulheres do agronegócio, herdeiros do escravismo colonial, da cultura da Casa Grande & Senzala, defensores de um suposto Positivismo démodé, de Ordem e Progresso, as classes médias fascistas, como anota a filósofa da USP, Marilena Chauí, o lumpesinato da burguesia e do proletariado são os estratos da sociedade brasileira, que em maio do ano de 2020, ainda adoram e ‘adornam’ os símbolos do badalado e surreal patriotismo nacional”, analisa o jornalista e sociólogo Renato Dias.

Símbolos novos

“Pelo menos Hitler criou um símbolo novo, por aqui vamos precisar trocar a bandeira quando fascismo for derrotado”, dispara o estudante de políticas públicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), Mateus Ferreira. No Instagram, bandeiras alternativas já são propostas ao público como alternativa ao verde e amarelo. É o caso, por exemplo, da “Bandeyra” do artista Federico Costa. O projeto nasceu na época do impeachment e substitui o verde e amarelo por rosa e azul e a frase positivista “ordem e progresso” por um arco-íris. “O arco-íris existe para a gente se lembrar que nem a luz do sol é feita só de branquidão”, escreve.

Bandeira proposta pelo artista Federico Costa

No WhatsApp, uma mistura das bandeiras do Haiti e Brasil faz referência ao haitiano que questionou o presidente Jair Bolsonaro, o Messias do quartel, no início da pandemia e gerou debate sobre a suposta incompetência do ex-capitão em liderar o País em meio à crise provocada pelo coronavírus. Essas iniciativas representam o esgotamento de parcela da população brasileira com seus símbolos pátrios. Nas últimas Copas Américas e do Mundo, incluso aí a tragédia do 7 a 1, em 2014, o Brasil repetiu nas quatro linhas o cenário da política pós-golpe ou impeachment, dependendo do ponto de vista do leitor.

Em Goiás, logo no início da pandemia de coronavírus, negacionistas da moléstia munidos com o uniforme da CBF saíram às ruas para protestar contra a quarentena. A mesma coisa ocorreu em São Paulo, na Avenida Paulista. Em outro ato, bolsonaristas foram mandados para a casa por integrantes da Gaviões da Fiel, a torcida organizada do Corinthians. “São elementos que veneram a ditadura civil e militar e fecham os olhos para as torturas, a exclusão social, o desemprego, a desigualdade social, o racismo estrutural, a misoginia, a homofobia”, arremata o jornalista e sociólogo Renato Dias, estudioso da ditadura civil e militar.

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