Tirem as crianças da sala. O que se desenrola a seguir na televisão, quer dizer, nestas linhas da revolta, é uma coisa altamente subversiva. Quem vive no século 21 e têm os ouvidos habituados a curtir a poesia de Bob Dylan, a guitarra uivante de Jimi Hendrix e a lisergia do The Doors, acha – e é, na verdade – o rock´n´roll dos anos 1950 um som bem bobinho. Mas, assim que a humanidade adentrou a década mais maluca de todas, os fatídicos anos 60, a cultura pop se revolucionou. Angariou, com Dylan e a Invasão Britânica, sentimentos que se traduziram na expressão visceral da sexualidade e de rejeição aos valores da classe média.
Para destroçar a ética protestante, a juventude passou a explorar novas alternativas estéticas. Ao contrário do jazz, cujos experimentos sonoros misturavam linguagens rebuscadas, o rock encontrou nos parâmetros criativos de Beatles, Rolling Stones e Bob Dylan meandros para virar a trilha sonora da rebeldia anti-guerra e pró-direitos civis. Mais tarde, na segunda metade dos anos 1960, entraram em cena o blues sensual movido pelo LSD do The Doors. Hendrix, em hiato por Londres, formou The Jimi Hendrix Experience. The Who, outro expoente desse período, já estava em cena. E Cream, de Eric Clapton, ousou numa mistura que envolvia rock, jazz e blues.
Nestes anos é foram lançados os discos que estabeleceram a sonoridade do rock como a conhecemos. Dylan acelerou a música folk e acrescentou nela guitarras elétricas, criando um dos discos mais importantes da música contemporânea, “Highway 61” (1965). Os Beatles, ao desembarcarem em solo americano, tinham na bagagem “A Hard Day's Night” (1964) – estrondoso sucesso. The Who, com sua musicalidade mais pesada do que a quarteto de Liverpool, lançou “My Generation”, cuja faixa-título virou um hino. Hendrix, Doors e Cream elevaram a coisa a outro patamar, com “Are You Experience” (1967), “The Doors (1967) e “Disraeli Gears” (1967).
A década de 1960, disserta Luiz Carlos Maciel em “Anos 60”, assistiu a um fenômeno de dimensões psicológicas, sociais e culturais que nenhuma teoria fora capaz de antever. De uma maneira espontânea, a juventude dos países anglo-saxões passara a negar todo o modo de vida ocidental, colocando em prática as frases libertárias que Jack Kerouac escrevera em “On The Road” (1957), os versos descaralhantes de Allen Ginsberg em “Uivo e Outros Poemas” (1956) e os ensinamentos de Wilhelm Reich na obra “A Função do Orgasmo” (1927). Como resultado dessa compilação transgressora, começou-se a menosprezar os valores mais sagrados da sociedade.
“O rock é contemporâneo de uma época de rupturas com o establishment”, analisa o jornalista e sociólogo Renato Dias, estudioso da ditadura civil e militar da América Latina. Eram tempos, continua o estudioso, de mudanças no comportamento, nas relações sexuais, do consumo de álcool e drogas. “Para contestar o modelo padrão do homem e da mulher tradicionais. Canções, com letras de protestos, ritmos elétricos, embalavam manifestações tanto contra as guerras, como a da Vietnã, quanto para denunciar ditaduras civis e militares, como as do Cone Sul”, relata o pesquisador. “Adrenalina pura”, dispara o aficcionado por Robert Allen Zimmerman, vulgo Bob Dylan.
Tanta afronta não poderia passar em branco pelo draconiano sistema de justiça americano. No dia 1° de março de 1969, o vocalista do The Doors, Jim Morrison, subiu ao palco, em Miami, nos EUA, após encher a cara. Morrison teria deliberadamente mostrado seu pênis para o público, simulando sexo oral com o guitarrista Robby Krieger. As autoridades locais emitiram mandado de prisão contra o cantor. Após extasiante julgamento, o líder dos Doors foi condenado a seis meses de prisão. “Eu simplesmente tento levar a situação até o mais longe possível”, disse Morrison ao jornalista Jerry Hopkins, da revista Rolling Stone, e autor de sua biografia, “Ninguém Sai Daqui Vivo”.
No Brasil
Por aqui, no princípio, o rock era chamado de iê-iê-iê e costumava ser feito cima de sucessos ingleses, italianos e americanos. O ritmo era primitivo e tinha pouca força nas paradas de sucesso, então dominadas pela bossa-nova de João Gilberto e Tom Jobim. Apenas em meados da década de 1960 é o que o rock nacional apareceu com força no show business, e denominado de Jovem Guarda. O movimento tinha tudo para ser passageiro, não fosse o programa televisivo apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa na TV Record, que chegou a incomodar nomes àquela altura consagrados da MPB, como Elis Regina.
Mesmo sendo rotulados como ‘rebeldes’, os ídolos da Jovem Guarda eram bem mais comportados do que os norte-americanos. As letras ainda tratavam de amor romântico, o que tinha sido abandonado nos States com Bob Dylan. Em 1967, a cantora Elis Regina (à época comandava o programa “O Fino da Bossa”, cancelado pela Record no mesmo ano) declarou guerra ao iê-iê-iê em nome do que, segundo ela, seria uma proteção aos valores nacionais. Personalidades de peso, como Geraldo Vandré e Edu Lobo, aderiram ao movimento. Esse clima de animosidade acabou gerando a ‘passeata das guitarras elétricas’, em 17 de julho de 1967.
Estudiosos atribuem o fim da Jovem Guarda ao momento em que Roberto Carlos abandonou o programa televisivo, em 1968. Paralelamente, o tropicalismo - capitaneado por Gilberto Gil, Caetano Veloso e Torquato Neto - chegava ao seu ápice. Com objetivo de resgatar a antropofagia, a Tropicália tinha uma visão universal da música brasileira e, ao contrário da trupe elitizada da MPB, não condenava a guitarra elétrica. “Por antropofagia se entende a atitude estético-cultural fundada, cunhada e teorizada por Oswald de Andrade, inspirado no quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, e nas sociedades indígenas originárias”, explica Lays Vieira, cientista social.
Da Tropicália, sai um dos grupos mais importantes do rock brasileiro: Os Mutantes. Formada por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias, a banda lançou o primeiro disco em 1968, onde demonstrou influência do rock psicodélico de São Francisco, quando Jefferson Airplane e Grateful Dead adicionaram um balde de LSD no gênero. Pode-se dizer, inclusive, que os Mutantes teriam sidos os responsáveis por inserir o rock no contexto da música brasileira, flertando nos anos 70 com o som progressivo feito pelos grupos europeus. Ainda assim, os paulistanos não se desligaram de suas raízes brasileiras. A rebeldia sonora, agora sim, estava estabelecida no Brasil.
Para ler
‘Anos 60’
Escrito por Luiz Carlos Maciel, obra percorre as transformações sociais pelas quais a humanidade passou na década de 1960. Maciel, ator da coluna Underground, no jornal O Pasquim, foi um dos primeiros jornalistas a falar de rock´n´roll no Brasil da ditadura.
‘Ninguém Sai Daqui Vivo’
O jornalista Jerry Hopkins, da revista Rolling Stone, biografou o líder da banda The Doors. Hopkins, aliás, foi um dos poucos repórteres que conseguiu conversar com o mítico vocalista após o famigerado show em Miami, onde Jim Morrison simulou sexo oral.
‘O Som da Revolução’
A obra, de autoria do historiador Rodrigo Merheb, faz um mapeamento histórico sobre o Rock nos anos psicodélicos de 1965 a 1969 abordando os principais embates estéticos e políticos de um dos grandes movimentos culturais contemporâneos