Notícia urgente: Odair José, 71, hibernou por um tempo. O mundo estava de ponta-cabeça e o cantor preferiu esperar ele aprumar da hipocrisia na casa das moças, onde a falsa moral não tem vez. Mas, após lançar no ano passado pelo selo Monstro Discos “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio”, seu 37º disco, agora o goiano se encanta com as lembranças da infância. “Estou há 120 dias em quarentena e me veio a ideia para fazer uma música sobre Morrinhos”, diz ao DM, com exclusividade. O single, que chega às plataformas de streaming na próxima segunda-feira (20), rememora como tudo começou.
Nascido em Morrinhos no dia 16 de agosto de 1948, o músico morou no pacato município até os 12 anos. Aos sete, demonstrou ao pai a vontade de aprender a tocar algum instrumento, mas o progenitor achou apropriado presentear o filho com um cavaquinho por ser, na visão dele, mais adequado ao tamanho do garoto amante da música. Desde então, Odair pisou poucas vezes nas ancestrais terras morrinhenses. A última delas foi há dois anos para se apresentar na praça. “Me senti de volta ao lugar onde tudo começou, onde me interessei por música ainda criança. E gostei de estar lá, da recepção das pessoas… me entendi ali”, relata.
Os sentimentos, aliado ao isolamento social provocado pela pandemia, serviram de gatilho para a concepção criativa de “Morrinhos”. Gravado no estúdio de sua casa, ao lado do filho, multi-instrumentista e produtor Junior Freitas, o single é o primeiro lançado por Odair desde que injetou boas doses de rock´n´roll no cenário brasileiro com “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio”, disco-conceitual que sucede os eletrificados “Dia 16” (2015) e “Gatos & Ratos” (2016). “Fiz a música (Morrinhos) e ela vai fazer parte do meu repertório. É como se eu tivesse presenteando Morrinhos”, sentencia o autor de “O Filho de José e Maria” (1977).
Em Goiânia, cidade para a qual mudou-se em 1961, pegou o começo dos Beatles, banda que, ao lado de Stones e Clapton, foi determinante em sua sonoridade. Na capital goianiense, Odair se apresentou com alguns grupos em escolas e festas, mas sempre foi guiado por um sentimento de querer mais. “Sempre achei que eu tinha que mexer com música”, disse, certa vez, o cantor em entrevista ao programa “Coletiva”, da TV Povo, emissora cearense. Ir para o Rio de Janeiro, portanto, era um caminho natural. A primeira tentativa fracassou quando a família o encontrou no ônibus que estava prestes a sair. Depois, deu tudo certo.
Na Cidade Maravilhosa, sem grana, mas com a intenção de gravar, Odair dormiu nas pilastras do Teatro Municipal e no banheiro do Aeroporto Santos Dumont, conhecendo o ‘submundo’ e transformando-se num observador arguto das pessoas. Após anos batalhando por um lugar ao sol, o cantor conheceu o produtor Rossini Pinto, da Jovem Guarda, que lhe ajudou a apresentar suas composições. Na extinta CBS, gravou o LP “Odair José” (1970) e trabalhou com Raul Seixas – o episódio é relatado com detalhe na biografia “Não diga que a Canção Está Perdida’, do jornalista Jotabê Medeiros. “Sempre trabalhei com rock´n´roll. Essa é a minha linguagem".
Rock clássico
O single “Morrinhos” segue a toada do rockão clássico de “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio”, seu último álbum. Tem um toque de guitarra à moda de Keith Richards. “Sempre gostei de rock mais clássico, como Beatles, Rolling Stones e Eric Clapton”, afirma Odair José. Mas esse lance de riffs eletrificados em Goiás dá certo? “Na época dos Beatles se costumava dizer: ô dois caboclos bão”, recorda-se o cantor e compositor. “Em Goiás, as pessoas gostam de guitarra”, atesta. Tanto gostam que sua nova música foi lançada em Morrinhos, na última quinta-feira (16), em homenagem aos 175 anos da cidade, e ela já caiu no gosto do público por lá.
Mas não é de hoje esse gosto por uma sonoridade mais roqueira. Odair conversava muito com o soteropolitano Raul Seixas na época em que a CBS lhe contratou, em 1969. O papo girava em torno de Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e Little Richards. Em suas letras, a atitude transgressora também está presente. Em 1973, no auge da ditadura civil e militar, compôs “Deixe Essa Vergonha de Lado”, canção que valorizava o trabalho das domésticas. Quatro anos depois, Odair deu uma guinada em sua carreira, lançando a primeira ópera-rock do Brasil, “O Filho de José e Maria”. “Eram 18 músicas, mas por causa da censura ficou com 10”, revela.
Hoje definido como cult, o disco incomodou os adeptos da falsa moral. “Poderia ser Jesus Cristo, mas era eu mesmo. Era eu ali”, ratifica. Odair foi excomungado pela igreja e adentrou a década de 1980 com trabalhos sem tanta expressividade, mas nada disso o impediu de seguir produzindo músicas com teor crítico. “Meus últimos trabalhos são a continuação daquilo (“O Filho de José e Maria”)”. Se na ópera-rock uma música dialogava com a outra, diz o cantor, o mesmo se deu em “Hibernar na Casa das Moças”. “É também é um disco conceitual, só que ali é um ambiente”, explica. “O Filho de José e Maria” foi reeditado no ano passado pelo selo Polysom.
Além disso, Odair foi o cantor que teve mais músicas censuradas pela ditadura. Mas e hoje, Odair? “Estamos vivendo politicamente um momento ruim. Vem chumbo grosso pela frente por um bom tempo”, sentencia. “Eu acho que o Brasil errou muito na escolha do governo atual. As pessoas não se deram conta do que acontecia, escolhendo o governo errado e vão pagar caro por isso”. Artista sempre atento ao que se passa no cenário político do País, Odair José conta que deve vir em breve um trabalho com Arnaldo Antunes, letrista que bebe na fonte da poesia concretista. Estamos aguardando. E ansiosos.
Ficha Técnica
‘Morrinhos’
Autor: Odair José
Gênero: Rock
Músicos: Odair José (voz e violão), Junior Freitas (Teclados, Baixo, Guitarra, Bateria, Arranjo, Gravação, Mixagem e Masterização)
Disponível nas plataformas de streaming na próxima segunda-feira (20)