Em 17 de julho de 1968, minutos antes da meia-noite, a atriz Marília Pêra e o ator Rodrigo Santiago foram obrigados por integrantes do grupo paramilitar Comando de Caça aos Comunistas (CCC) a, sem roupas, saírem à rua. Armados até os dentes, com revólver e soco inglês, os invasores espancaram o elenco e destruíram o cenário.
Sim, a arte incomoda. Incendiando o ambiente teatral daquele ano, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa dirigiu o espetáculo “Roda Viva”, de Chico Buarque, no Rio de Janeiro, onde também houvera um atentado, mas dessa vez a bomba, no Teatro de Arena. Já prenunciava-se o horror do AI-5, que viria a ser sancionado em 13 de dezembro de 1968.
Partindo do ingênuo texto de Chico sobre a vida de um ídolo da música popular que é explorado pela indústria fonográfica e manipulado pela imprensa, o encenador criou um ritual furioso e provocador, onde os atores vão à platéia para incitá-la.
O que os militares, por ser assim, não gostavam. E combatiam, com seus métodos agressivos, truculentos e repressores. A peça, considerada um clássico que o crítico Anatol Rosenfeld definiu como “teatro agressivo”, transporta para o palco o sentimento de violência e desconforto em relação a uma situação política tensa e insustentável. Agora, essa história é rememorada.
O Itaú Cultural disponibiliza amanhã, às 14h, para o público, uma edição especial do projeto “Camarim em Cena”, realizado com o diretor, dramaturgo e ator José Celso Martinez Corrêa. O programa tem conversas feitas entre os anos de 2016 e 2019 na sede do instituto, contando com convidados da dança, do teatro e da música.
Na conversa, Zé Celso relembra como era fazer arte naqueles tempos de repressão política. “Eu sou o teatro brasileiro, de vida o espelho verdadeiro, sambando nesse carnaval com a minha arte, que é imortal”, diz o artista, abrindo o bate-papo e citando trechos do samba “Quatro Séculos de Paixão – História do Teatro Brasileiro”, de 1975.
“Como diz Dionísio, eu acredito na potência do teatro, no poder da presença diante da presença do poder”Zé Celso, dramaturgo
Em 2008, para comemorar os 50 anos de “Roda Viva”, Zé Celso remontou o clássico texto de Chico. “Nós compusemos mais músicas”, recorda-se o diretor sobre a nova versão da peça que despertou a fúria dos militares naquele ano que insiste em não terminar.
“Então, agora, a versão é do Chico e de toda a Oficina Uzina Uzona. Começamos a reescrevê-la, porque uma série de coisas mudaram. Mas o teatro é assim. Você sempre traz a cada dia um público, a cada dia uma peça. É tudo vivo”, diz.
Um dos expoentes da Tropicália e nome indispensável da contracultura no Brasil, Zé Celso rememora ainda os tempos de prisão e tortura e da época em que viu-se obrigado a ir para o exílio, em Portugal e Moçambique.
Do ímpeto da luta, ainda na entrevista concedida ao jornalista e crítico teatral Nelson de Sá, o dramaturgo destaca a resistência para manter de portas abertas a sede do Teatro Oficina, em São Paulo, um dos pontos turísticos da cidade e berço da nossa cultura.
“Como diz Dionísio, eu acredito na potência do teatro, no poder da presença diante da presença do poder”, ratifica o artista sobre sua companhia e sua atuação no teatro.
Outras obras
Além de consagrar-se com o espetáculo “Roda Viva”, no ano de 1968, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa montou ainda a peça “As Três Irmãs”, do escritor Anton Tchekhov, na década de 1970. A encenação do espetáculo demonstra a força poética de Zé Celso.
Em 1974, isolado pelo pessoal do teatro e buscando novos rumos para sua carreira, transforma seu grupo na comunidade Oficina-Samba, lançando o documento “S.O.S”. É preso pela polícia política da ditadura e vê-se obrigado a ir para o exílio. Com a Lei da Anistia, em 1978, retorna a São Paulo e passa a atuar como agitador cultural, realizando projetos onde misturava linguagens artísticas.
Após fazer pequenos eventos anos 1980, retoma a cena com o espetáculo “As Boas”, de Jean Genet, em 1991. Quatro anos mais tarde, faz a leitura de “Mistérios Gozosos”, obra de Oswald de Andrade. E segue encenando gente do calibre de Antonin Artaud, Jean Genet, Nelson Rodrigues e Euclides da Cunha.
Para o crítico Yan Michalski, Zé Celso é síntese da efervescência dos anos 60. “Foi o encenador mais aberto a idéias ousadas e sempre renovadas, e capaz de realizar, a partir delas, espetáculos surpreendentes, generosos, provocantes, excepcionalmente inventivos”, escreve Michalski, em “Pequena Enciclopédia do Teatro Brasileiro Contemporâneo”.
Serviço
‘Camarim em Cena’ com Zé Celso Martinez Corrêa
Mediação: Nelson de Sá
Quando: dia 22 de agosto (sábado),
Horário: a partir das 14h
Onde: www.itaucultural.org.br