“De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para sempre o instante preciso e transitório”, disse o fotojornalista francês Henri Cartier-Bresson, um dos maiores nomes do clique no século 20. A arte de reproduzir a eternidade, como sentenciou o biógrafo Pierre Assouline, em “Cartier-Bresson: O Olhar do Século”, é um cutelo que, na eternidade, fixa o instante que a ofuscou. Os de Bresson são de qualidade, de sensibilidade, de beleza, e estão em perfeita simetria harmônica com a infinita descrição de sua Leica, fiel companheira de vida. Ao longo de sua carreira, Bresson notabilizou-se por estar no lugar certo na hora certa.
Se todo esse feeling serviu para que o filósofo Jean-Paul Sartre definisse Cartier-Bresson como o sujeito que “fotografou a eternidade”, o mesmo pode-se dizer da fotojornalista inglesa Maureen Bisilliat. Após estudar artes plásticas na França e nos Estados Unidos, Bisilliat radicou-se em São Paulo, na década de 1950, e desenvolveu aqui um formidável trabalho de investigação antropológica durante a época em que era fotojornalista da Editora Abril. Nos anos em que atuou nas revistas Realidade e Quatro Rodas, ela pôde clicar contextos que, hoje em dia, com a inércia da necropolítica, servem para entender o que antes se resumia à literatura.
É, Bisilliat, quem diria que seria possível regredir em poucos anos algumas décadas? Pois é, seus livros fotográficos-literários das obras de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto indicam um elemento narrativo, cujo tema às vezes requer sequência, história e ritmo. Parte disso pode ser visto no ensaio “Caranguejeiras”, um de seus mais conhecidos. Nele, nos confins dos mangues pernambucanos, ela registra o trabalho de coletoras de caranguejos, que mergulham na lama, com barro impregnado da cabeça aos pés. Com Bisilliat, a fotografia é uma espécie de dança, com a pintora influenciando a retratista.
“Comecei a conhecer os sertões pelas suas veredas. Tudo começou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa – não sem a observação de que talvez não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. Não só compreendi como mergulhei nas águas daquele mar de palavras – o sertão não viraria mar? –, instigada a investigar a relação direta de Rosa com os gerais de Minas Gerais”, contou Bisilliat, em material que faz parte da exposição “Os Sertões”, do Instituto Moreira Salles, disponível no Google Arts And Culture.
Sabe-se lá Deus o porquê, quer dizer, até sabe-se, seu olhar provoca hoje atenção ao fator humano, o que é observado na diversidade de retratos que compõem sua obra e nos registros que fez das manifestações culturais brasileiras. Estão tudo ali: a vestimenta do sertanejo, a pintura corporal indígena, a rede do pescador e a fantasia carnavalesca. A série “Sertões”, por exemplo, conta com fotografias feitas entre 1967 e 1972, em aldeias santas dos municípios de Canindé, Juazeiro do Norte e Bom Jesus da Lapa, no Ceará e Bahia. “Forma-se uma cumplicidade natural. Eu não gosto da solidão. Não gosto de trabalhar sozinha”, disse Bisilliat.
As “tintagens” e “refotografias”, técnicas amplamente reconhecidas em seu trabalho, modificam a estrutura da imagem, aproximando-a das experiências pop dos anos 1960, com cores saturadas, efeitos de solarização e uma miscelânea entre foto documental e inventividade tropicalista. Segundo a fotojornalista, os processos de pós-produção da labuta fotográfica são uma reflexão à parte, com temporalidades se entrecruzando. “O instante da foto / o tempo do acontecer / a memória do fato / a reinvenção da imagem / os processos editoriais / o cotidiano / o originário / o sem fim…”, escreveu a estilista das lentes.
Exposição
Na série “Ecolines”, disponível virtualmente por meio do site da Galeria Marcelo Guarnieri, Bisilliat apresenta retratos modificados com obras que fazem parte dos ensaios “Ecoline” e “Sertões”. O público poderá mergulhar na ampliação provocada pelos pretos e brancos “tintados”, retomando uma técnica que a fotojornalista era adepta durante seus anos de estudante no Arts Students League, na década de 1950, numa Nova Iorque pré-Geração Beat. As imagens, guardadas a sete chaves no arquivo da artista, agora vem a público depois de terem sido encontradas no ano passado, passando por um processo estético para a exposição.
Quem estiver em São Paulo poderá dar um pulo na galera, mas terá de realizar um agendamento via e-mail ou por meio de um formulário a ser preenchido no próprio site. Já os que estão e isolamento social em Goiânia, a saída pode ser baixar as fotografias de Maureen Bisilliat ou participar da exposição virtual. De toda maneira, o trabalho de Bisilliat merece ser degustado por devotos da arte. É sensível, é poético, é lindo. É o Brasil e sua diversidade. Em tempo: a exposição de “Os Sertões”, de 2018, no Instituto Moreira Salles, pode ser conferido no Google Arts And Culture.