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Fotojornalista mostra desigualdade em ensaio

“Filmando “Ulisses”, eu percebi o quanto cada um pode ler diferentemente uma fotografia”, disse Agnès Varda (1928-2019), em sua faceta de fotógrafa, ao lançar no circuito televisivo francês a primeira imagem das 170 que faziam parte da série “Une Minute Pour Une Image” (“Um Minuto Para Uma Fotografia”, em português). Exibido em 1982, o projeto veiculava um retrato por dia, no mesmo canal, por 15 segundos silenciosos, precedendo a descrição feita por um convidado desconhecido do público. Com essa iniciativa, Agnès democratizou o acesso à arte, com seu clique delicado, com seu olhar poético e com sua sensibilidade... uma beleza!

Passadas três décadas e oito anos dessa iniciativa de Varda, a fotojornalista Júlia Aguiar, 24, subiu o Morro dos Macacos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para clicar a desigualdade social (“fotografia deveria ser um direito e não privilégio”, diz ela) intrínseca à capital fluminense e seus glamurosos bairros ressoados imagética, literária e musicalmente na cultura brasileira. As imagens, com textura de cor que remetem à sensibilidade soturna do preto e branco, fazem parte de uma reportagem (fotográfica e textual) publicada no Jornal Metamorfose, coletivo de mídia independente do qual Júlia – ao lado deste subscrito aqui – é uma das fundadoras.

Com o preto e branco fisgando a atenção de quem se propõe a ver as fotografias, a situação dos povos que vivem nas comunidades do Rio encontram a partir do clique de Júlia uma expressividade necessária, contradizendo a canção de Chico Buarque (“a nossa dor não sai no jornal). “Acredito que o pb deixa a situação mais clara para quem observa a foto, na maioria dos casos - pra mim - o que importa não são as cores do lugar, e sim o sentimento da ação que estou fotografando. Os olhares, expressões, texturas tudo fica mais evidente no preto e branco. Claro que vez ou outra as cores que compõe a foto são o fato em si”, relata.

Ali, naqueles becos estreitos onde o samba reinou em outrora e foram tão bem mostrados pelo clique cuidadoso de Júlia, residem histórias e sonhos, mas também há violência estatal. “Não existe imparcialidade e minhas fotos deixam muito claro isso. Eu fotografo através de uma perspectiva que é real tanto quanto qualquer outra que habita o espaço tempo em que a foto é tirada”, conta a estilista das lentes. Para ela, a fotografia é mais do que o registro burocrático para compor uma página de jornal. “É intenso e visceral. Eu me sinto na obrigação de me colocar à disposição de contar histórias diferentes da minha realidade”.

Radicada em Santa Teresa, histórico bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, Júlia tem consciência de que é uma mulher branca privilegiada e, portanto, não faz sentido usar o jornalismo como subterfúgio para legitimar uma narrativa de “gente branca de classe média”. Porque isso, continua a fotógrafa, já tem muita gente fazendo, especialmente nos meios de comunicação sudestinos. Então essa inquieta militante das lentes alimenta e guia sua alma a partir da necessidade de compreender o mundo, encarando a realidade tal como ela é. Nada melhor, ora pois, do que utilizar-se dos meandros oferecidos pelo fotojornalismo para ampliar a voz dos oprimidos.

“Acredito que a fotografia é capturar momentos reais, e o jornalismo é, sobretudo, contar histórias. Quando essas duas potências se unem, para mim, é uma das coisas mais cruas que podemos criar”, reflete Júlia, que estudou fotografia documental no Senac, em São Paulo, e teve fotos publicadas na Ponte Jornalismo. Ela crê que a vida é uma grande perspectiva de realidade e, assim, o fotojornalismo torna-se uma ferramenta fundamental quando o assunto é captar o cotidiano. “Sinto-me uma mosca observando o mundo quando estou com a câmera na mão. É uma arma verdadeiramente perigosa: o fotojornalismo é mostrar realidades.”

Multifacetada

Além do fotojornalismo, Júlia Aguiar transporta seu olhar cuidadoso à sétima arte. Tem como mestre Glauber Rocha (“A Revolução dos Cravos”, de 1974), Jean-Luc Godard (“A Chinesa”, de 1967) e Agnès Varda (“Varda por Agnès”, de 2019) – só para citar algumas, pois suas referências são vastas. Diretora dos documentários “Primavera Estudantil” (2016), “Piratas Radiofônicos (2016) – que, aliás, contou com uma singela participação deste repórter -, “Ocupa Brasília” (2017), “Resistências” (2018), “Um Trago de Liberdade” (2019) e “Balbúrdia” (2019), ela dedica-se agora a um projeto mais ousado: um longa-metragem.

Nomeado de “Camaleão: A Vida É Um Portal”, ainda sem data prevista para lançamento, o filme nasceu de uma “brisa filosófica” – como Júlia chama a velocidade com que sua mente concebe ideias – e conta a história de personagens que representam arquétipos de tarot. “Temos o Mundo, a Estrela, o Louco, o Eremita e por aí vai. Esse filme, na verdade, é uma grande brisa filosófica, que se baseia em três perguntas: onde estou? Quem eu sou nesse lugar? E para aonde vamos? Os personagens vivem uma crise existencial performática! No mais, o enredo do filme ainda é segredo”, revela Júlia, sorrindo, agora em sua faceta cineasta.

Até no universo das letras, que exaltou Anais Nin e Lawrence Ferlinghetti (duas de suas influências literárias mais marcantes), Júlia transita. Tanto é que o livro-reportagem “Diário Subversivo: Dias de Embriaguez, Utopia e Tesão”, escrito por este operário das palavras, foi prefaciado por ela. “Um golpe acontecia na política brasileira. Diretos que nossos antepassados lutaram bravamente para conseguir estavam sendo retirados, buscando escravizar a percepção do povo brasileiro”, escreveu. Júlia Aguiar, seja na fotografia, no cinema, no jornalismo ou na poesia, tem muito a mostrar. Vale a pena conferir.

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