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“Não vejo uma mudança profunda”, diz atriz e escritora Fernanda Torres

Com a pandemia, a atriz e escritora Fernanda Torres viu a estreia da peça com o diretor Felipe Hirsch, inspirada em “Adão e Eva no Paraíso”, de Eça de Queiroz, ser adiada e as gravações da série “Fim”, baseada em seu livro, suspensas. E, enquanto não for possível retomá-los, os projetos presenciais da atriz foram substituídos pelas produções do confinamento.

Além de interpretar uma terapeuta na série Diário de Um Confinado”, estrelada por Bruno Mazzeo, disponível no Globoplay, Fernanda gravou com a mãe, a também atriz Fernanda Montenegro, e sob direção do marido, Andrucha Waddington, um dos episódios da série “Amor e Sorte”, no sítio onde estava confinada com a família, na região serrana do Rio. A série, de Jorge Furtado, deve estrear em setembro na Globo - e contará com outras duplas de atores que estão juntos no isolamento, como Lázaro Ramos e Taís Araújo.

Também por causa da pandemia, as mudanças na grade de programação da emissora trouxeram de volta ontem a série cômica “Tapas & Beijos”, protagonizada por Fernanda e Andréa Beltrão. Exibido entre 2011 e 2015, o programa, de Claudio Paiva, traz Fernanda como Fátima e Andréa como Sueli, amigas que moram no subúrbio carioca e trabalham em Copacabana, na Djalma Noivas - e é naquele cenário onde se desenrola toda a vida delas, inclusive amorosa. As atrizes dividem a cena com nomes como Fábio Assunção, Vladimir Brichta e Flávio Migliaccio, que morreu em maio. Fernanda conversou, do Rio, por videoconferência.

Agência Estado - Como vê Fátima e Sueli hoje?

Fernanda Torres - São personagens muito atuais ainda. São duas mulheres trabalhadoras. Elas não tiveram filhos, não se casaram. É uma série sobre gente que trabalha, que passa mais tempo no trabalho que com a própria família. Então, todos os problemas pessoais, as relações afetivas acabam passando pelo trabalho, que é a realidade de grande parte da população brasileira. E Fátima e Sueli foram criadas na época da ascensão da classe C.

Era uma época em que o Brasil estava empregando muito, então estavam todos empregados na série. O Claudio Paiva falou: hoje elas estariam na fila dos R$ 600. E aquela rua inteira estaria fechada: o Djalma Noivas, que vive de casamentos, estaria falido, o restaurante do Seu Chalita estaria fechado, primeiro porque não temos mais o Seu Chalita, infelizmente, e depois porque os restaurantes fecharam. A La Conga, a boate, estaria fechada, e talvez só o Armane, com aquela lojinha de produtos chineses, estaria vendendo online. Hoje seria ainda atual, porque acho que hoje trataria das pessoas que perderam seu emprego.

AE - Atualmente, são usados termos como empoderamento feminino, masculinidade tóxica... As duas representam muito esse empoderamento que se fala hoje, são independentes...

Fernanda - É, mas existe uma coisa interessante na série, porque não é só a questão da mulher, tem também a questão de raça, de gênero. O personagem do Orã (Figueiredo) era casado com um travesti. O Armane seria o macho tóxico, mas, ao mesmo tempo, era condenado tanto à mulher quanto à amante, aquilo era quase algo trágico.

O que quero dizer é que acho que o Tapas trazia tudo isso, mas não de uma forma panfletária. Às vezes, sinto que esses temas são abordados através de um espírito um pouco acusatório, como se a arte fosse ensinar as pessoas a viver. E acho que o Tapas fazia isso discutindo esses temas sem impô-los.

"Fátima e Sueli foram criadas na época da ascensão da classe C. Era uma época em que o Brasil estava empregando muito, então estavam todos empregados na série." Fernanda Torres, atriz

AE - O elenco se reencontrou pelo Zoom, e imagino a tristeza pela morte do Flávio Migliaccio.

Fernanda - O Flávio era um ator incrível, com a herança do (Teatro de) Arena, com a herança de uma época em que o Brasil perseguia essa questão do homem brasileiro. Meu primeiro contato com o Flávio foi no (Aventuras com) Tio Maneco, que é a estreia do Maurício (Farias, diretor de ‘Tapas & Beijos’) com 10 anos, ele é um dos meninos do Tio Maneco.

Falei disso com o Maurício: você estreou como ator no Tio Maneco dirigido pelo Flávio, e o último trabalho da vida dele foi com você. Flávio se foi dizendo: o que minha geração lutou não aconteceu, que é uma frustração muito grande, eu sinto nessa geração, que lidou com a ditadura militar, que participou dos atos pró-democracia, que viu a social-democracia ascender ao poder e, de repente, a gente chega ao mundo de hoje. Por tudo isso, é uma coisa muito forte a falta do Flávio.

AE - Como será o episódio seu e de Fernanda Montenegro?

Fernanda - Foi tudo escrito rápido. Entre o Jorge falar e a gente começar, foram dez dias. A princípio, ele me chamou para escrever. Eu disse: vai ser esquisito escrever para mim e para minha mãe. Falei: vamos chamar o Antônio Prata. E o Prata, com o Chico Mattoso, desenvolveu algo muito legal, uma espécie de inversão. Uma mãe que foi jovem nos anos 1960, 70, uma mulher que foi livre, e com 90 anos está danada da vida.

Era um pouco falar dessa questão da terceira idade que, de repente, tem que ser confinada, tem risco de vida, não pode fazer nada. Aí a gente fez a filha em home office, que mora em São Paulo, do mercado financeiro, que atualmente está tendo de demitir pessoas. E essa filha pega o carro, pega a mãe na praia tomando caipirinha, põe no carro, e sequestra a mãe para isolá-la no mato. São esses dois mundos, e acaba que a quarentena aproxima as duas.

AE - Qual lição vai ficar dessa pandemia?

Fernanda - Lição eu não sei, acho que a pandemia vai interferir no mundo. Acho que o negacionismo do Trump talvez custe a ele a eleição. Então, todo esse posicionamento anticiência que a gente viu crescer de maneira tão assombrosa nos últimos anos, terraplanista, fundamentalista, isso talvez sofra um revés por causa da pandemia. Não estou dizendo que o mundo será melhor ou pior, mas acho que o que está acontecendo com o Trump nos EUA diz alguma coisa sobre essa visão anticientífica. Agora, acho que, assim que sair uma vacina, rapidamente o mundo voltará a poluir como nunca, a devastar como nunca. Não vejo uma mudança profunda.

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