“A ditadura militar me negava passaporte, como a muitos milhares de uruguaios, e eu estava condenado a fazer filas perpétuas no Departamento de Estrangeiros da polícia de Barcelona”, escreveu o jornalista e escritor Eduardo Galeano (1940-2015) na obra “O Livro Dos Abraços”, publicada no Brasil pela editora L&PM.
O trecho refere-se aos anos de chumbo na América Latina e narra as agruras de Galeano no exílio forçado. “Certo dia eu não aguentava mais. Estava farto de filas de horas nas ruas, e farto dos burocratas cujas caras não conseguia mesmo ver”, recordou-se o cronista, em um texto que insiste em ser atual.
É, meu caro Galeano, se não tivestes nos deixado naquele fatídico 13 de abril de 2015 estaria completando 80 anos. Teria visto o revival fardado que recaiu sob o teu Brasil, ai de ti!, como diria o cronista Rubem Braga. E acompanharia o lançamento do último livro que escreveste, “O Caçador de Histórias”, obra com a qual registraste o espírito dos anos de 2012 e 2013.
Certamente estaria dedicando esforços intelectuais em algum novo projeto, pois concebeste em vida mais de uma dúzia e meia de livros. Deles, como bem sabes, saíram os clássicos “As Veias Abertas da América Latina”, “O Livro dos Abraços” e “Futebol Ao Sol E À Sombra”.
Sei, sei: de novo falar de ‘Veias Abertas’ é um saco...
Bom, da geração seguinte a que levou à glória o peruano Mario Vargas Llosa, o argentino Júlio Cortázar e o colombiano Gabriel García Marquez, o uruguaio Galeano foi que o mais obteve êxito.
Seja fazendo jornalismo, seja fazendo história, seja fazendo crônicas sobre glórias e fracassos do futebol, não importa: seu famoso ensaio jornalístico (que pode ser definido como livro-reportagem, numa boa) contou com uma estreia sem alarde no mercado editorial. Anos depois, todavia, houve uma explosão de gente atrás dessa obra, o que a mantém ainda no filão destinado aos livros essenciais da história da literatura latina-americana.
Se até “Dias e Noites de Amor e de Guerra” a obra de Galeano alternava entre a ficção (seus contos de “Vagamundos” contam com a beleza da linguagem, razão pela qual são eternos), não-ficção (“Guatemala, Um País Ocupado”) e ensaio jornalístico (“As Veias Abertas”, sempre ela), em “Dias e Noites”, há uma inventividade, talvez uma miscelânea de estilos e gêneros: reportagem, conto, crônica, poesia, história...
Diz o tradutor Eric Nepomunceno (responsável por tornar acessível “Cem Anos de Solidão”, clássico supremo de Gabo) que daí em diante a escrita dele ganharia um estilo único. De fato, foi a partir dessa convergência que nasceram “Amares”, “As Palavras Andantes”, entre outras preciosidades.
Ainda assim, é importante ressaltar, houve tempo para que o mestre do texto latino-americano adentrasse numa empreitada literária, histórica e jornalística de fôlego.
Após mergulhar numa consistente pesquisa, reunir um calhamaço de dados e com saudades de casa no exílio, Galeano ousa em recontar a História da América Latina desde a criação do universo – com base, é claro, nas lendas dos povos originários, nada de cristianismo, axé – até 1700. No segundo, o pesquisador vai até 1901 e, no terceiro e último, finda em 1984, época em que o escritor retornou do exílio na Europa.
Outro patamar
Com a trilogia sobre a América Latina, o escritor Eduardo Galeano foi alçado a outro nível, e logo consolidou-se como um dos grandes nomes da literatura latina. Mais importante: deu um xô naquele temor do primeiro livro, no caso “As Veias Abertas da América Latina”, e passou a ser reconhecido como um talentoso cronista dos modos de vida do continente.
O autor, porém, passou nos últimos anos de vida a rechaçar “Veias Abertas’, dizendo que não escreveria - já maduro - aqueles pensamentos. Depois de provar que detinha uma genialidade incomum para o ofício de lapidar palavras, Galeano lançou e encantou com jóias, eu diria que raras, aliás, do calibre dos já citados “O Livro dos Abraços”, “Palavras Andantes”, além de “Espelhos ou Os Filhos de Dias”.
Amava o Rio, mas não lhe poupava críticas: “Na cidade violenta soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deus de africanos”. A beleza da prosa de Galeano prevalece no caldo de uma consolidação da barbárie, descrita com tintas de terror nos posts do ódio. A poética do escritor é uma de suas qualidades inerentes.
Mais uma vez, a gente precisa retornar às sílabas do alento para encontrar amor no bálsamo das páginas de exaltação do ser latino-americano. Ou seja, em tempos onde aberrações destilam preconceito contra o povo latino, ler o mestre Galeano é primordial. “Naquele noite-dia, ele subiu até o último andar, apertou a campainha e a porta se abriu”. Era o amor da vida de Nelson de Rodrigues. Lindo, lindo.