Meu lema pra cada peregrinação etílica é ter um papel, uma caneta e um fígado ao estilo Ernest Hemingway. Na falta dos dois primeiros aparatos, conto com a camaradagem da memória – que se você não for um Truman Capote pode ser traído por lampejos de esquecimento. O segundo, que é ter um talento etílico, é fundamental para qualquer observador da vida noturna.
A verdade é que, sejamos honestos, nunca se sabe quando, nem onde, muito menos em que situação o personagem vai aparecer. Pode ser numa caminhada, meu caro Machado de Assis, pelo Morro das Camélias; pode ser enquanto anda de Bonde com a barriga roncando pelo Centro do Rio, vide os escritos de Nelson Rodrigues; pode ser num botequim, nobre Fernando Sabino, quando sai do expediente.
O desta crônica, por exemplo, estava sentada - encostada à pilastra, pra ser exato - num botequim na Lapa, reduto boêmio do Rio – lugar em que vivera Madame Satã, personalidade retratada na fita de mesmo nome protagonizada por Lázaro Ramos e dirigida por Karim Ainouz. Só que o escriba não consegue recordar-se com detalhes de tal solenidade boêmia, desculpa.
Feitas estas considerações, eis os fatos: eram umas nove, dez horas da noite.
Bêbado, eu estava. Quer dizer, bêbado a gente estava – este escrevinhador que vos fala, a fotógrafa Lee Aguiar e o poeta IkaRo MaxX.
Para refugiar-se da chuva, optamos por procurar abrigo numa bodega no cruzamento da Mem de Sá com a Gomes Freire, e conseguir, enfim, esconder-nos das primeiras gotas que caiam. Mas, vejam vocês, o estabelecimento com o qual acreditávamos que seríamos salvos estava empanturrado de gente – nenhuma novidade pra um sábado.
Papo vai, papo vem, uma senhora (“discípula da Dercy Gonçalves”, como se definia) assinalou que poderíamos nos abancar à mesa em que estava. “Já vou embora”, disse ela, pedindo mais uma cerveja. E ali, conosco, interagindo em meio a gargalhadas, ela ficou até o prenúncio da madrugada, onde foi interpelada por Lee em certas situações. “A senhora votou no Bolsonaro? Pode falar”, questionou minha amiga.
Dona Márcia, sessenta e tantos anos de puro sofrimento numa sociedade patriarcal, teceu um comentário protocolar sobre interferência dos filhos em sua vida: “Implicam se eu sair do trabalho e beber uma cerveja”. Implicam? “Implicam, sim, tem 35 anos e ainda mora comigo”.
É, cara dona Márcia, olha que este subscrito é dez anos mais novo que seu primogênito e foi enxotado de casa pelos pais, digo, os velhos saíram e me deixaram sob o comando da coisa: água, luz, internet, TV a cabo, a porra toda é custeada pela fortuna que ganho no ofício gutemberguiano, risos.
Por fim, lá pelas tantas da aleatoriedade boemia tipicamente carioca, ela manda um causo. E não foi qualquer, não, tá achando o quê da Dona Márcia? “Conheci o cantor e compositor Aldir Blanc, um dos maiores letristas da Música Popular Brasileira. Me lembro que ele cantava o hino “O Bêbado E A Equilibrista” nos botequins de Vila Isabel”, detalhou.
Não me pergunte como, mas no dia seguinte encontrei o endereço de três bares que Aldir Blanc frequentava no bairro berço do samba anotado em meu celular. Quem sabe eu não vá saborear uma breja lá, quem sabe...
Marcus Vinícius Beck, jornalista e escritor. Escreve às terças, quintas e finais de semana