“A “alma” e o “outro” podem assim atuar como se fossem independentes, mantendo relação caprichosa, ilustrada por acidentes e distrações que vão parecendo tão significativos e próprios do ser quanto os atos conscientes”, disse o crítico literário Antonio Candido no ensaio “À Roda do Quarto e da Vida”, publicado na revista da USP, em 1989. O trecho refere-se ao clássico “Viagem Ao Redor Do Meu Quarto”, obra que encantou Machado de Assis e agora ganha nova edição da Editora 34. “É como se Xavier estivesse inaugurando mais de um século antes de Freud algo parecido ao que este chamaria de “psico-patologia da vida quotidiana”, analisa Candido.
Maistre concebeu o livro no longínquo século 18 e o texto sobreviveu a moléstias contagiosas, como a Gripe Espanhola – epidemia que ceifou de 20 a 50 milhões de vidas entre 1918 e 1920. Condenado a 42 dias de prisão por ter duelado com um oficial, o escritor - que era um conde militar francês - precisava encontrar um jeito de lidar com o tédio do cárcere, criando uma hilariante viagem ao “mundo letrado”. Na obra, alçada à condição de best-seller naquele tempo, ele descreve movimentos comuns do cotidiano, como levantar e deitar, além das refeições. Tudo temperado com as digressões que exemplificam a vida psíquica no confinamento.
Com o isolamento social provocado pela pandemia de coronavírus, a obra voltou a despertar atenção do público. Para se ter uma ideia, entre março e abril deste ano, a versão digitalizada da edição francesa do século 18, que pode ser consultada no site da Bibliothèque National de France, teve mais de 6 mil acessos. “É uma paródia com conteúdo político genial que mostra um lado meio psicanalítico”, afirma o editor Samuel Titan Jr, da 34, ao DM. “Não conseguimos aprisionar nosso corpo e, por isso, a obra é uma ode à liberdade”, completa. Após uma rápida folheada em “Viagem Ao Redor do Meu Quarto”, vê-se que o livro possui, de fato, uma dimensão filosófica.
Em seus 42 capítulos, destinados um para cada dia de prisão, o leitor é desmontado por metáforas espertas (“quero aplicar um bloco de gelo sobre meu coração"), bastante reflexivas (“uma cama nos vê nascer e nos vê morrer”) e bem-humoradas (“proporciona ao viajante sedentário mil reflexões interessantes”). E já de cara, lá pelo segundo parágrafo, Maistre manda isto: “Meu coração saboreia uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes aos quais ofereço um recurso garantido contra o tédio e um alívio das dores de que padecem. O prazer que há em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto dos homens; ele tampouco não está ao sabor da fortuna”.
Escrito em Turim e publicado em 1795, a obra de Maistre é um exercício analítico absolutamente subversivo das hierarquias, sejam militares, metafísicas e literárias. O autor, tirando sarro das circunstâncias que colocaram-lhe em isolamento, transforma seu martírio em matéria-prima para uma paródia dos relatos de viagem, das dissertações eruditas e dos textos densos de filosofia. Ao longo da obra, os sentimentos e as fantasias passaram a ocupar o cenário que abriram alas às gerações seguintes de escritores: Nietzsche dizia que gostava de “Viagem”, assim como Machado de Assis deixou-se influenciar por Maitre em seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Inspiração
Traduzida por Veresa Moraes, o clássico “Viagem Ao Redor Do Meu Quarto” fez a cabeça de Machado de Assis assim que ele teve contato com a obra. No prólogo da terceira edição, ao comentar uma observação de Antônio Joaquim de Macedo, Machado diz que Xavier de Maistre viajou “à roda do quarto”. “De Brás Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da vida”, escreveu o autor de “Dom Casmurro”. Nos romances que fazem parte da segunda fase de sua produção, Machado rompeu com o estilo de parágrafos longos dos livros anteriores, hipótese que, segundo o crítico literário Antonio Candido, “poderia ter sido ajudada pela leitura de “Viagem”’.
A verdade é que, em mais de uma vez, o romancista reconheceu a importância de Xavier de Maistre para a consolidação de um estilo textual mais fluído e menos maçante. Discussões estético-literárias à parte, “Viagem” é, de fato, um daqueles livros que acalentam o público - com o gosto da boa arte - nestes estressantes dias de confinamento. Com a lista de vítimas da Covid-19 aumentando dia após dia, as divagações reconfortantes realizadas pelo mestre francês cumprem a função protocolar de mostrar que, mesmo em tempos no qual o nível da fadiga emocional vai às alturas, é possível distrair-se no emaranhado de subversão às hierarquias. Viajar, portanto, é necessário. E como.
Ficha Técnica
‘Viagem Ao Redor Do Meu Quarto’
Autor: Xavier de Maistre
Tradução: Veresa Moraes
Editora: 34
Preço: R$ 44,00