No mesmo ano de seu centenário, Clarice Lispector ainda carrega em seu nome o peso da enigmática personalidade que também carregava em vida. Infelizmente, em reflexo de nossos sombrios e caóticos tempos de dilaceramento ético, a estátua em sua homenagem, amanheceu deploravelmente cercada por lixo no Rio de Janeiro, no último dia 26.
Os holofotes de Clarice apenas aumentam quando é necessário lembrar que, a publicação de suas cartas na coletânea “Todas as Cartas”, uns dos lançamentos mais esperados em 2020 traz quase 300 correspondências escritas por Clarice Lispector. Obra que em muito contribuiria para compreensão material do itinerário literário da escritora.
Autora de romances, contos e ensaios, Clarice Lispector é posiciona-se, segundo a fortuna crítica, como uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX e a maior escritora judia desde Franz Kafka. Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas densas, reputando-se como uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano, como evidenciado em Amor, conto da autora. Quanto às suas identidades nacional e regional, declarava-se brasileira e pernambucana.
Clarice Lispector estudou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, apesar de, na época, ter demonstrado mais interesse pelo meio literário, no qual ingressou precocemente como tradutora, logo se consagrando como escritora, jornalista, contista e ensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes da Literatura brasileira e do Modernismo, sendo considerada uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros.
Sabe-se que Clarice Lispector dominava pelo menos sete idiomas: português, inglês, francês e espanhol, fluentemente; hebraico e iídiche, com alguma fluência; e russo, com pouca fluência levada da infância. Como tradutora para o português, entretanto, utilizou somente o inglês, o francês e o espanhol.
Hoje, o DM Revista dedica-se a analisar um de seus contos onde a característica padrão, a epifania, evidencia-se de maneira mais marcante. O famoso conto de Clarice, “Amor”, presente na obra Laços de Família, livro de contos, com primeira edição pela Editora Francisco Alves, em 1960; carrega em si muito do que caracteriza a maior parte da produção da autora.
“Amor" retrata um episódio da vida de uma mulher comum que, perante uma situação ou experiência cotidiana, sofre uma epifania que a faz refletir sobre si mesma e o mundo que a rodeia, essa mulher é Ana, uma mãe, esposa e dona de casa que ocupa o seu tempo cuidando da família e das tarefas domésticas.
A personagem, retornando de suas compras, avista um cego mascando chiclete em um bonde e, tomada por uma epifania, derruba suas compras e parte em uma jornada complexa de dualidades presentes em si. Parte do cotidiano, passaria e ainda passa despercebida para a maioria das pessoas, mas provocou um efeito devastador em Ana, que em uma narrativa de um dia, debruça-se em diversos questionamentos de desestabilizam sua noção de mulher convencional em um profundo mal-estar diante do mundo.
Aquela visão perturbou Ana como uma ofensa, já que, para ela, foi "como se ele a tivesse insultado", porque a sua simples existência perturbava a sua paz alienada, porque a confrontava com a dureza da vida, a realidade nua e crua. A personagem, acomodada em sua rotina quase automática, foi despertada diante de "uma vida cheia de náusea doce", autêntica, cheia de coisas inesperadas, de beleza e sofrimento.
Nesse sentido que Ana se torna a única personagem a quem a autora confere densidade psicológica. Outro aspecto que provoca maior tensão ainda é o fato de a narrativa se passar em um único dia, algo que se assemelha ao romance Mrs. Dalloway (1980), de Virginia Woolf, e o jogo contínuo de reflexões e questionamentos que, apesar de inquietantes, não movem a personagem a uma transformação. Essa movimentação volátil pós-epifania traduz que nem sempre a personagem se desloca para uma real alteração do curso de sua vida.
As epifanias são comuns em personagens femininas de Clarice Lispector, embora, novamente, a movimentação não estremeçam de fato as estruturas materiais da vida das personagens. Ana desloca-se de sua vida e passa a estranhar o próprio lar, mas isso não faz com que ela escape da mediocridade, e de sua tristeza com a precariedade da vida.
Assim podemos admitir, que o desfecho banal do conto acontece justamente pela não movimentação de Ana após sua epifania. Ana retornou para sua alienação e conforto da suposta ignorância porque tem ciência do incômodo causado pelas revelações epifânicas da vida, e “antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.”