Se Gay Talese (mestre do Novo Jornalismo) fosse redigir a abertura desta reportagem talvez ele optasse por um olhar inesperado: o Grande Hotel, em suas calçadas, abriga pessoas de diferentes tribos urbanas que convivem ali às sextas-feiras após o expediente curtindo um samba sem gastar um centavo. A não ser, lógico, a grana da cerveja vendida por ambulantes posicionados estrategicamente na Avenida Goiás.
É importante lembrar, todavia, que eu não sou o jornalista americano e o Chorinho – que busquei evocar por meio da descrição feita no parágrafo acima – ficou gravado nas paredes da memória da população goianiense. O monumento está vazio. Solitário. Triste. Sem vida. Nem alma. Não há mais a algazarra dos bêbados. Tampouco os apaixonados.
“O primeiro hotel de Goiânia está abandonado e sucateado. Poderia ter várias ocupações como um museu do art déco ou mesmo abrigar a Secretaria de Cultura do município. Os grandes eventos que aconteceram no Grande Hotel ficaram no passado e na história”, lamenta o produtor cultural Gutto Lemes, ao DM.
O prédio, simbólico monumento em estilo art déco erguido no coração de Goiânia, já foi considerado o suprassumo dos bailes e reuniões de negócios que aconteciam nas primeiras décadas de vida da então nova capital do estado. Inaugurado em 1937, o local foi construído em três pavimentos de 60 quartos, além de quatro apartamentos de luxo, banheiros chiques, com água quente e fria. Seu restaurante, para os padrões da época, passou a ser ponto de encontro ao discreto charme da alta sociedade.
Segundo Lemes, as primeiras apresentações de chorinho são mais antigas do que se pensa. “Em 2002 na Casa Cor que ocupou o Grande Hotel, a arquiteta Eliane que coordena o evento me procurou pra atividades culturais de inauguração”, relata. Para animar a festa, ele contratou o grupo Alma Brasileira e o evento privado teve presença de jornalistas no estacionamento do Hotel. O público, lembra, ficou na entrada. “Com a Big Band do centro cultural do Gustavo Ritter que apresentaram oito peças.”
Localizado num ponto estratégico da capital goianiense, com fácil acesso para a Praça Cívica e vias importantes da cidade, como as avenidas Tocantins e Araguaia, ao longo dos anos o Grande Hotel foi se transformando em ponto de encontro entre jovens sedentos por novas experiências e amantes da cultura em geral: ali passou a rolar encontros e desencontros, amores e desamores, versos e prosas, poetas e músicos... Todo mundo junto e misturado pela pulsão de conversas libertárias.
“Já participei de muita coisa no Grande Hotel, mas uma vez muito legal foi quando eu descobri a produção de zines poéticos anarquistas goianos numa festa punk que teve na frente do Grande Hotel”, recorda-se a artista Maia, que frequentava assiduamente o local. Imagine a cena: ela, uma jovem loira, vestida como hippie, entre os punks, dançando. Inusitada, não? “Foi acho que em 2015 e foi muito incrível. Tem fotos disso, até. É uma lembrança da qual eu gosto muito”, revive ela, sorrindo.
Aos 84 anos, completados durante a maior crise sanitária de nossa geração, o espaço precisa ser ocupado para que haja sua manutenção e valorização. É o que diz Lemes, comparando com a Antiga Estação Ferroviária da capital: “Hoje abriga um museu, galeria de arte e espaço de serviço que atende a população”. Em se tratando de um patrimônio tombado, prossegue o produtor, é necessária maior atenção por causa do valor histórico. “Falta vontade e o devido respeito ao acervo art déco goianiense.”
Em balanço sobre a gestão da cultura divulgado no ano passado, a Secretaria Municipal de Cultura (Secult) estimou que o projeto Grande Hotel Vive o Choro, em 68 edições, contou com a participação de 120 grupos musicais e mais de 200 mil pessoas prestigiaram o evento. Segundo a diretora de políticas e projetos culturais, Marci Dornelas, o Chorinho conquistou um público cativo, de diferentes bairros da cidade.
“Realmente noites muito agradáveis, de boa música e na rua, a céu aberto, gratuitamente, para quem quiser chegar, curtir, cantar e dançar”, disse Dornelas, na ocasião.