A linguagem poética simboliza a quebra da lógica. Nela, por meio do desnudamento provocado pelas metáforas do lirismo extravasado, o poeta liberta a existência humana da camisa de força imposta pelo ímpeto que condena a embriaguez dos sentidos. Portanto, evocando aquela sentença eternizada por Charles Baudelaire, embriagar-se é preciso.
Tanto é preciso que, em uma obra única na qual está acompanhado por Pablo Neruda, Federico García Lorca, T.S Eliot e Ezra Pound, o poeta Gabriel Nascente, 71, refugiou-se em sua casa-chácara no município de Inhumas à procura de estabelecer um contato íntimo com sua literatura. Deu frutos: um poema-épico, batizado de “A Ópera dos Ausentes”, de 650 páginas, está prestes a ser lançado. Ao que tudo indica, pela Kelps.
Bié, como o poeta é chamado pelos mais próximos, conversou com a reportagem do Diário da Manhã, respeitando as normas de isolamento social, na tarde de ontem por meio de ligação telefônica. Ele contou que, assim que apareceu pela primeira vez o alarmante aparecimento de uma pandemia com alta taxa de letalidade, iniciou aquilo que pretendia ser um poema-crônica sobre a pior moléstia desde a Gripe Espanhola.
“Em outras palavras, seria um poema-reportagem abordando a dramatização do poema e da enfermidade instalada dentro do mundo. E, logicamente, numa ideia inicial, era apenas um poema de duas, três laudas”, revela. No entanto, à medida que os dias foram passando, Gabriel viu que era pertinente se aprofundar “na temática dessa tragédia universal que eu imaginei inspirada no pandemônio da pandemia”.
Então o escritor decidiu soltar o verbo: madrugou e zanzonou horas de seu dia à máquina de escrever, passando os manuscritos concebidos à mão para a velha companheira de batuque poético. Os versos, diz Gabriel com o bom-humor que lhe é característico, são frutos das agruras do seu espírito impactado por essa “enfermidade nefasta”. A obra foi ganhando corpo a partir de movimentos do pretérito, com os quais ele atravessou a dramaticidade da presença e a jogou para a linguagem poética.
“Os mínimos gestos, como o tormento da buzina rasgando madrugada adentro, foram trazidos como elementos dos seres humanos, dos mortos, de uma forma lírica e épica, buscando responsavelmente uma linguagem com certas ondulações, ora para o prosaico, ora para o lírico clássico”, conta. Quando percebeu, estava trabalhando uma média de cinco a oito horas diárias. “Foram quase 300 dias de inspiração ininterrupta.”
Com 50 anos dedicados ao ofício poético e tendo destaque para o tempo em que fora editor-adjunto do suplemento literário deste jornal, Gabriel atesta que, ao começar a escrever “A Ópera dos Ausentes”, queria se dar ao direito de rir de si mesmo. “Ou eu me consagro como um grande épico ou me espatifo como o maior idiota da literatura brasileira”, debocha o poeta. Ou seja, prossegue, é uma colocação de insegurança porque, na verdade, “eu não posso imitar os deuses”.
Gabriel, amante dos livros, confessa que todos os dias manuseia uma obra literária. "Agora, se você me perguntar se eu quero ser imortal ou aplaudido, essas coisas todas inerentes ao coroamento da vaidade só tem uma razão para acontecê-las, se vierem da mais absoluta verdade do mundo superior, porque do contrário não há sentido. Não se trata de um poeta ser maior que o outro. É ele acreditar naquilo que faz”, diz.
Em primeira mão a este repórter, o poeta revela que há uma imagem no meio do poema, de inspiração surrealista, que aborda a temática da dor na humanidade, que é tão grande, mas tão grande, que os astros se irritam com isso a buscam ajuda nas nuvens e as nuvens, também frágeis, começam a chorar. “Dessa imagem meio maluca, por causa dessa tragédia catastrófica, nasceu o título “A Ópera dos Ausentes.”’.
Nos últimos anos, o poeta tem mergulhado numa esforço pessoal para ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), o que seria o coroamento de um estilista das palavras elogiado por nomes como Ivan Junqueira, Ferreira Gullar, Olga Savary, Carlos Drummond de Andrade e Carlos Nejar. De Nejar, aliás, Gabriel foi agraciado com o poema “Gabriel Nascente de Goiás”: “é um poeta em estado fonético”.
Em vida, Drummond resumiu a poética de Gabriel: “sua poesia continua viva e atuante, e testemunho disto é “Pastoral”, que recebi há pouco, e onde encontro muitas confirmações do seu engenho criador, sempre alerta diante da vida”. Gabriel Nascente, de fato, é um poeta das metáforas da existência e do lirismo humano. Antes mesmo de nascer, “A Ópera dos Ausentes” já é um documento histórico relevante do maior desastre sanitário em um século.