“The Center Will Not Hold”, documentário dirigido por Griffin Dunne que retrata a vida da jornalista e escritora Joan Didion, serve para mostrar a força intelectual de uma narrativa feroz cujo estilo fora dos padrões marcou o ensaísmo americano do século 20. Didion prova que o jornalismo deve deixar de ser um ofício de pessoas preocupadas em puxar o saco de certas figuras públicas para se tornar coisa de gente grande.
Um dos recursos sedutores do texto de Didion é que o trinco da fechadura está bem ali para que o giremos e mergulhamos em sua intimidade. Nascida e criada na Califórnia, ela vivera os mais agitados anos de sua vida entre Los Angeles e São Francisco, produzindo um jornalismo de empolgante qualidade: há quem lhe rotule como uma das matriarcas do chamado Novo Jornalismo, apesar de Lillian Ross ter brilhado em 1950 ao publicar um perfil experimental de Ernest Hemingway, na revista New Yorker.
Mas Didion foi além da não-ficção, com livros de ficção e até peça teatral no currículo. Seu maior legado como repórter foi ingressar numa penosa caminhada entre empatia e distanciamento, e o refinamento com o qual ela usa essa capacidade a torna modelo para, segundo a crítica Rebecca Mead, da revista americana, escritoras de constituição leve e temperamento neurastênico. Sem empatia seria perca de tempo observar a vida.
A jornalista eleva sua profissão à condição de arte e a tira do limbo perecível, de embrulhar peixe no final do dia, para virar um binóculo preocupado em fotografar o comportamento, a cultura e a política, com o rigor dos grandes repórteres e estilo típico dos mestres da literatura. Como acabou de sair pela Todavia, recomendo que tire a prova dos nove lendo “Rastejando Até Belém”, obra que compila 22 ensaios de Didion. Aí, sim, aventure-se por “The Center Will Not Hold”, na Netflix.
Se Tom Wolfe atirou uma cartela de LSD sob o texto jornalístico e Norman Mailer trouxe a Nova Esquerda para o centro da narrativa, arrisco a dizer que Didion rechaçou a divisão entre parcialidade e imparcialidade. Seria melhor contar a história de uma trupe doidona careta ou com a cabeça feita de ácido? Ou seria mais atrativo narrar a luta do século entre George Foreman e Muhammed Ali com distanciamento?
Nenhum, nem outro: o que verdadeiramente vale a pena é sentar e escrever a melhor história possível. Pois o que vemos, com isso, é a emoção pura que o jornalismo é capaz de proporcionar ao seu público e ao seu praticante. É o choque de narrativa que você experimenta quando alguma cena é capturada, ou quando a metáfora certa sai da ponta dos dedos, do batuque solitário do teclado, e salta direto aos olhos do leitor.
Vale a pena assistir “The Center Will Hot Hold” por se tratar de um passeio pelo mundo das letras: vemos a câmera percorrer os livros nas prateleiras da casa de Didion. Nelas estão John Steinbeck, Dante, Beatrix Potter, Doris Lessing e Kurt Vonnegut. Conhecemos também ela sentada em frente ao computador, escrevendo algum texto ou lapidando frases redigidas antes. E nos sentimos em casa para percorrer seus álbuns de fotografia, ao lado do marido Gregory Dunne, escritor e com quem tinha uma relação literária: ele revisava seus textos e ela os dele.
Ou seja, um era leitor do outro, do tipo que remendava frases se elas estivessem fora de lugar. Didion descreve sua rotina doméstica: Dunne se levanta de manhã, acendia a fogueira, preparava o café para a filha, Quintana, e a levava à escola. “Então eu me levantava, tomava uma Coca-Cola e começava a trabalhar”, diz a jornalista. É uma solução instrutiva, não necessariamente exemplar, para o desafio de ser escritora-mãe, combinando trabalho criativo com funções da mulher no patriarcado.
“The Center Will Hot Hold”, de certa forma, é um modelo de reportagem cujo guia é o sentimento de empatia, mas nesse caso do sobrinho Griffin Dunne, que é ator, para a tia: afinal, como não gostar de uma escritora e ensaísta que batiza “Rastejando Até Belém” com uma epigrafe do poeta Yeats? Ou como não amar uma jornalista que conviveu com Janis Joplin, entrevistou Joan Baenz e perfilou uma mãe que dera LSD para a filha de cinco anos, retratando-a como fã de Jefferson Airplane?
No final do filme, o substituto do espectador é o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, que, ao conceder a Didion a Medalha Nacional das Artes, em 2013, segura as mãos da ensaista cansadas de escrever. Joan Didion tem a mais nobre das características que uma repórter precisa: a observação cuidadosa e atenta.
A maioria de nós não faz; a maioria de nós não quer fazer. Mas Didion, não: ela captou a alma da cultura americana e, se em meados dos anos 1960 fechava com os republicanos, ao voltar de El Salvador se tornou uma esquerdista convicta.
‘The Center Will Hot Hold’
Direção: Griffin Dunne
Gênero: Documentário
Disponível na Netflix