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Eu te amo, eu não amo mais

O cantor Serge Gainsbourg chocou a sociedade francesa dos anos 1960 ao retratar os gemidos da sua esposa, a atriz Jane Birkin, durante um orgasmo na canção “Je T'aime Moi Non Plus”. Foi um escândalo que irritou as sentinelas da moral e alvoroçou os mesmos que se espantaram com “Flores do Mal”, obra escrita por Charles Baudelaire que inaugurou a poesia moderna. O ano era 1968, e a música de Gainsbourg se tornou hino de uma juventude que havia lido “A Função do Orgasmo”, de Wilhelm Reich. 

Só na França de De Gaulle, o disco “Jane Birkin & Serge Gainsbourg” (1968), o qual a faixa do orgasmo abre o repertório, vendera 6,5 milhões de cópias e chegou a brigar com os Beatles pelos primeiros lugares nas paradas de sucesso britânica. Mas incitar a volúpia, como o Vaticano definiu as intenções de Gainsbourg, era proibido. No Brasil, os censores da ditadura determinaram que a música não fosse tocada nas rádios.

Artista multimídia, bêbado, fumante e feio, Gainsbourg queria ser pintor, mas logo descobriu que era mais interessante tocar nos cabarés de Paris anos 1950. Ele dirigiu filmes e videoclipes e viu que seu talento de fato era compôr: o jeito para a coisa lhe ascendeu à condição de ídolo nacional, atravessando os anos 1960 com canções que foram disputadas por Marianne Faithfull, Juliette Greco, Mireille Darc, entre outras.

A aparente incompetência para as artes visuais fez com que ele considerasse a música uma arte inferior. Ainda assim, Gainsbourg é um exemplo de modernidade, transgressão e subversão, apesar de suas inspirações clássicas. Ele figura no estafe dos gênios musicais e literários. Gainsbourg foi à sua maneira (modesto e polêmico) um continuador de Debussy e Saint-Saens, expoentes da música clássica francesa.

Não demorou para o cantor que difundia o erotismo publicamente cobiçar Brigitte Bardot. Sem tempo a perder, Gainsbourg colecionava relacionamentos com as mais belas mulheres da época. Para ele, tudo era permitido e, do caso que teve com Bardot, restou-lhe a música “Je T´Aime, Mon Non Plus”, ou “Eu Te Amo, Eu Não Amo Mais”, em tradução, na qual reproduziu em detalhes uma transa, com ênfase nos gemidos excitantesl. 

Acontece que, antes de a música vir a público, Bardot (a essa altura já namorando o milionário Gunter Sachs) vetara sua divulgação: ela ficou com receio de ter sua intimidade exposta. Depois de um tempo guardado na gaveta, o cantor se apaixonou por Birkin, em Londres, e então o hino do sexo pode vir à tona. Vale registrar, contudo, que o tom dessa versão era mais quente que o da gravação original, rechaçada por BB. 

Menos de um ano depois das transformações propostas pela insurreição de maio de 1968, a música ainda soava como o estouro de uma bomba.

A gravadora Phillips recusou-se a comercializá-la e as rádios, de veiculá-la, assim como as emissoras de televisão também. Foi no circuito de motéis e prostíbulos que a canção caiu no gosto popular. No entanto, os gemidos da liberdade do gozo assumiram uma ressonância peculiar em países que viviam sob ditaduras, como Brasil, Espanha e Portugal, que não eram exatamente conhecidos por serem bem resolvidos no sexo. 

“Quando visitei a América do Sul, percebi o impacto que a música teve, durante algumas semanas em que a censura ainda não havia batido”, disse a cantora Jane Birkin ao jornal conservador Le Figaro, em entrevista publicada em 2016. Ela reconhece que deve sua carreira a esse sucesso erótico. “Já sei que melodia será tocada no meu funeral”, afirmou ela. 

Se os conservadores e cristãos recharam a beleza do sexo evidenciada na música, os pais de Jane Birkin não viram volúpia nela. Birkin tinha 23 anos quando entrara nos estúdios para gravá-la e, ao colocar o toca-discos de 45 rpm e descer a agulha na vitrola da família, imaginou o pior.

Só que , na verdade, eles acharam a melodia bonita, e a cantora (com apoio dos pais) ouviu dos fãs todo tipo de elogio nesses anos: que as pessoas conceberam seus filhos ao som do hino do orgasmo, que é a melhor música para transar, que é prazerosa, que é linda, que é formidável e... por aí vai. 

Aos olhos de hoje, e olhe que ainda a liberdade dos corpos atormenta por aí, não restam dúvidas que “Je T ́Aime Mon Non Plus” de fato foi fundamental para o reconhecimento internacional das carreiras de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Não foi por acaso que os críticos do jornal britânico The Guardin, por exemplo, consideram o LP “Jake Birkin & Serge Gainsbourg” “o melhor disco erótico de todos os tempos”. 

Mesmo assim, quando recebeu um telefonema em 1986, Birkin ficou com receio. Era Gainsbourg, então seu ex-marido. Ele queria lançar a versão com Brigitte Bardot de “Je T´Aime”. “Eu disse a mim mesmo: 'todos vão perceber que eu sou menos interessante do que ela”’, disse, ao Le Figaro.

No entanto, é a sua interpretação que entrou para a história, e não a dela.  É impossível homenagear Gainsbourg numa efeméride dos 30 anos de sua morte, a ser completada na terça-feira (2), e esquecer de mencionar sua mais famosa composição. 

Inspirado pela poesia de Baudelaire, Arvers e Nerval, Gainsbourg gostava de misturar sons. Quando gravou o hino da França, a Marselhesa, numa versão reggae, mais uma vez causou polêmica. Era um imprevisível, incontrolável: mudava de estilo em cada disco, indo sempre mais longe nas letras que cantava e nas intervenções midiáticas. Seu lado “perigoso” era charmoso. Quase nenhum artista pop do período ousava ter isso.

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