Ele estava com 27 anos, havia conseguido a façanha de entrevistar o nazista Adolf Hitler e agora queria ficar cara a cara com o chefe da URSS Joseph Stalin. “Mr. Jones” – traduzido para a versão brasileira como “A Sombra de Stalin” – retrata a história do jornalista galês Gareth Jones, um aluno que se destacou no curso de russo na Universidade de Cambridge e amava jornalismo ao mesmo tempo em que assessorava o ex-premiê britânico David Lloyd George, no começo da década de 1930.
Corta... Há um campo de trigo vasto bem no início do filme que “balança lindamente sob o sol”. A diretora polonesa Agnieszka Holland se limita a imagem, mas depois muda para um homem fumando e batendo à máquina de escrever numa casa próxima dali. Ele não é identificado, porém provavelmente você vai descobrir de quem se trata assim que ouvir a palavra “animal farm”. Sim, é o jornalista George Orwell.
O autor de “A Revolução dos Bichos” se inspirou para criar sua fábula anti-stalinista na reportagem-denúncia publicada por Jones na imprensa inglesa. Foi um episódio bombástico que revelou ao mundo a verdadeira face do regime instaurado por Stalin após a morte de Lênin, em 1924, e como ele usava o realismo socialista e a propaganda para moldar a imagem que a URSS era um país livre e uma sociedade igualitária.
Jones é o herói deste filme furiosamente sombrio cujo suspense é bem construído, e que retrata a viagem do repórter à Ucrânia em 1933, então mergulhada numa catástrofe humanitária que gerara uma crise alimentícia responsável pela morte de milhares de pessoas. Claro, tudo com a conivência de Stalin e o silêncio consentido do detentor do prêmio Pulitzer e correspondente do jornal The New York Times em Moscou, Walter Duranty.
Thriller político sobre uma figura esquecida na história do jornalismo que concorreu ao Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2019, “Mr. Jones” abre no início dos anos 1930 com o protagonista relatando sua viagem à Alemanha e chamando atenção para o perigo do nazismo. Zombaram de Hitler e Goebbels, como se os mecanismos da democracia fossem moldá-los às regras do jogo político. Minutos depois, Jones está falando ao telefone em russo e, em seguida, descobre que um amigo fora morto.
É um caos iminente que o galês se depara ao conhecer os repórteres estrangeiros na Rússia, que ficam restritos apenas a Moscou. O mais misterioso da turma é Duranty, interpretado com frieza pelo ator Peter Sarsgaard. Em crítica publicada no New York Times, a jornalista Manohla Dargis alimenta a suspeita que fora o correspondente do jornal americano o idealizador do termo stalinismo. Se sim ou não, James Norton faz o mocinho com segurança e a superficial Alda Brooks fica por conta da bela e talentosa Vanessa Kirby, famosa por atuar na série “The Crow”.
Holland consegue, com maestria, tencionar o filme sem necessariamente precisar do subterfúgio dos diálogos. Como, por exemplo, assim que Jones parte para a Ucrânia: o clima leve dá lugar a uma fotografia soturna, pesada. Há um evidente toque de perigo nisso tudo, como no momento em que ele está no vagão do trem e os passageiros começam a lhe observar. A mentira stalinista de que a URSS seria o paraíso da classe trabalhadora é retratada numa inteligente e triste metonímia: o jornalista joga um pedaço de comida no chão e as pessoas ali lutam para pegá-lo.
Por essas e por outras, “Mr. Jones” é um registro de um testemunho de um período que ficara conhecido pela história como Holodomor. A serviço da jornada do herói, o longa evita entrar na cabeça do jornalista. O espectador pode ficar com a impressão que se sabe pouco sobre ele, suas agonias e desejos pessoais, elementos subjetivos que podem tornar a trama um pouco aquém da esperada. A verdade é que, com a guerra se aproximando, ninguém queria saber como as coisas de fato se desenrolavam.
Em tempo: Walter Duranty jamais teve seu Pulitzer revogado. Já Gareth Jones foi assassinado durante um assalto por uma pessoa ligada ao regime soviético, em 1935. Se Duranty escreveu nas páginas do The New York Times que Jones tinha interesses outros na denúncia da fome, o galês, num texto publicado no Financial Times em 1933, sentenciou: “A principal razão para a catástrofe na agricultura russa é a política de coletivização”.
‘A Sombra de Stalin’
Direção: Agnieszka Holland
Gênero: Suspense
Duração: 2h12
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