O cronista esportivo Nelson Rodrigues criou a expressão “complexo de vira-letras” após o desastre da Seleção Brasileira na tragédia que ficara conhecida como “Maracanazzo”, na final da Copa do Mundo de 1950. Ao contrário do vexame do 7 a 1 em 2014, a virada uruguaia, com falha do goleiro Barbosa (vítima do racismo da sociedade brasileira por esse episódio), revelou baixa auto-estima coletiva. No fiasco comandado por Luiz Felipe Scolari, as pessoas estavam rindo no dia seguinte.
Dois mundiais depois, o mundo conheceu os efeitos especiais à la Steven Spielberg de Edson Arantes do Nascimento. Pelé, então um adolescente de 17 anos, chapelou um zagueiro sueco na final e, sem deixar a bola bater no chão, mandou um petardo para o fundo das redes. Estava liquidada a fatura e o Brasil finalmente se sagrava campeão do mundo, e aos poucos fomos batendo de frente com os europeus, pois éramos melhores do que eles nesse negócio de jogar futebol. Pelo menos nisso...
Simbolicamente, a importância de Pelé não é pouca coisa para a identidade nacional. Os diretores britânicos David Thyrin e Ben Nicholas, no documentário “Pelé”, disponível na Netflix, revisaram o passado do craque meio século depois. Temas espinhosos que o melhor jogador da História se esquiva em responder foram levantados pelos cineastas. A ditadura militar é um desses assuntos. Pelé disse:
Ainda que aqui é acolá arriscasse finalizações de fora da área no filme, Pelé se mantém na retranca, esperando o contra-ataque. O que vemos no Rei é praticamente aquilo que não sai da boca dos jogadores hoje: não misturo futebol com política. Nada fora do patrão. É só ver o elenco da Seleção. São exóticos nomes como Afonsinho, Paulo César Caju ou Doutor Sócrates desde que o esporte deu certo abaixo da linha do Equador.
No filme, a aula de história, sociologia e antropologia fica por conta dos jornalistas Juca Kfouri, José Trajano e Paulo César Vasconelos. Eles traçam paralelos entre os anos em que Pelé brilhou nos gramados com o cenário político da época. Primeiro, a felicidade coletiva do período democrático após as conquistas de 58 e 62. Segundo, o espetáculo mundial do Tri durante a barra mais pesada da ditadura, após AI-5. O gênio brasileiro foi de símbolo da alegria que representava naquele tempo ter nascido no berço da bossa nova a simpatizante da tirania fardada.
Outro personagem que figura no filme, o cantor Gilberto Gil sentencia: “Pelé é uma estrela brilhante que fulgura em um céu negro da vida brasileira”. A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) segue na mesma linha: “É a imagem mais promissora de um menino negro e pobre”.
Já o ex-ponta esquerda do Botafogo, Paulo César Caju, companheiro de Pelé no time do Tricampeonato mundial, em 70, contrapõe as falas, dando uma visão necessária para fazer do documentário uma obra consistente jornalística e historicamente. “Pelé retoma a posição do ‘sim, senhor’”, afirma Caju sobre assuntos essenciais que todas as pessoas públicas não devem se esquivar. É importante lembrar que essas são falas de um ex-jogador engajado que nunca fugiu do enfrentamento a políticos e cartolas.
No final, o veredito: Pelé não jogou a Copa de 70 para agradar os militares, embora o general Emílio Garrastazu Médici tenha usado e abusado da conquista para promover sua imagem pública. "Pelé não gosta muito de tocar no assunto, mas Médici dizia que era bom ele jogar a Copa de 70", disse Juca, mostrando que a turma fardada não aceitou tranquilamente a decisão do Rei de anunciar sua aposentadoria da Seleção, após o fiasco canarinho quatro anos antes, em 1966.
De fato, o camisa dez desembarcou no México sob todas as suspeitas: não jogaria direito, tinha azar em disputar mundiais, estava em acentuada decadência. Ledo engano. “Eu não morri, eu não morri”, narra o canhotinha de ouro, Roberto Rivelino, que também estava no timaço que faturou o Tri, só lembrar da felicidade do Rei no vestiário. Edson Arantes ter sido Pelé não é moleza. É muita coisa.
'Pelé'
Diretores: David Thyrin e Ben Nicholas
Gênero: documentário
Disponível na Netflix