À medida que garimpava o acervo do Páginas Antigas, sebo localizado na rua 4, no Centro de Goiânia, comecei a me deparar com relíquias capazes de fazer a cabeça daqueles que – assim como eu – curtem conversar, escrever ou escutar música. Horas depois, já em casa e munido de um disco do pianista Thelonious Monk e outro dos Rolling Stones, encontrei no site da Monstro Discos versão em vinil de obras como “Hibernar na Casa das Moças” (2019), último trabalho do cantor Odair José.
O vinil voltou a mil por hora. Se até pouco tempo degustá-lo era uma tarefa considerada mais complexa comparada à comodidade virtual do streaming, hoje essa crença parece ter ido por terra. A cultura do bolachão atrai uma geração que cresceu na era digital, e – sem passar pelo CD – descobriu na mídia física um prazer sonoro. E, de quebra, ajudou a indústria discográfica a registrar aumento de 300% no comércio de LPs, de acordo com relatório da Associação Americana da Indústria da Gravação.
“Voltamos a vender muito disco: CDs e, principalmente, vinil. Sempre fizemos vinil e agora esse formato voltou com tudo”, relata ao Diário da Manhã Leonardo Razuk, da Monstro, cuja coleção Série Ouro lançou em vinil preciosidades como “A Sétima Efervescência” (1997) e “Uma Tarde na Fruteira” (2008), ambos da lenda do rock gaúcho Júpiter Maçã – as duas obras-primas estão disponíveis para venda no site da Monstro Discos por R$ 300 e R$ 280, respectivamente.
Na pandemia, o selo incentivou as bandas a lançarem seus trabalhados, e o número nas plataformas digitais aumentou junto com a venda de discos. “Foi o que nos manteve de pé”, afirma Razuk. O distanciamento social, continua ele, possibilitou maior presença da cultura no dia a dia e provocou um sentimento nostálgico generalizado. Isolar-se, sem amigos, sem sair de casa, além de se deparar com a morte o tempo todo, a dor, a perda e o caos, fez com que ficássemos saudosos dos bons momentos da vida.
Aí entra a importância da música: as boas memórias, os momentos marcantes, de afeto, carinho, flerte, transa, gargalhada, embriaguez e prazer são – em grande medida – embalados por um riff de guitarra, um dedilhado, uma letra ou uma harmonia. Nossas primeiras memórias, aquelas que de fato valem a pena se recordar, possuem como trilha sonora os artistas dos quais mais gostamos. E talvez seja um movimento natural haver um crescimento na procura pelos discos que nos marcaram a vida.
“Daí, muita gente partiu para consumir discos... e acho que isso permanecerá durante um tempo: o consumo de música digital, mas também em formatos físicos”, acredita Razuk. Ao ficar impedido de organizar eventos presenciais, como os tradicionais Cidade Rock e Goiânia Noise, a Monstro escolheu lançar a live Goiânia Rock City numa charmosa fita K7, com encarte elegante, arte assinada por Katira e colorida. “Afinal, nós somos a Monstro Discos e Fitas Magnéticas... essa é a nossa razão e é nisso que acreditamos”, diz o produtor, cuja K7 já está à venda no site do selo por R$ 45,00.
Além de relançamentos promovidos pela própria Monstro, o mercado brasileiro conta ainda com uma importante iniciativa da Polysom, no sentido de preservar a memória discográfica brasileira, mantendo vivo o legado de álbuns que marcaram a MPB e nossa história. A fábrica de discos, por exemplo, colocou em seu catálogo “Realce” (1979), de Gilberto Gil”, “O Filho de José e Maria” (1977), ópera-soul de Odair José, bem como trabalhos mais recentes como “Planeta Fome” (2019), disco de Elza Soares.
Medalhões
Até os Rolling Stones, medalhões do rock com quase seis décadas de estrada, optaram por lançar o histórico show na praia de Copacabana no ano de 2006 em DVD, blu-ray, CD e vinil. Beatle renegado como compositor por Paul McCartney e John Lennon, o músico George Harrison criou o primeiro disco triplo do rock em 1971, e deve sair em breve uma edição comemorativa sobre um dos mais belos álbuns de folk-espiritual já feito, com canções que ficaram fora à época e agora chegam ao público.
Para Mateus Mondini, do sub-selo da Nada Nada Discos, é inegável que os artistas hoje lançam músicas soltas, mas há aqueles que continuam fazendo discos, seja em formato físico ou digital. “Acho que tem hora para tudo, para ouvir uma música solta de um artista no meio de uma seleção, para ouvir um disco completo de um artista novo, para revisitar ou descobrir um clássico”, afirma Mateus, cujo projeto é dedicado a reedições da música experimental brasileira em vinil – o último a ser relançado foi “A Música Brasileira do Século XX” (1959), de compositora e pianista Jocy de Oliveira.
A dúvida, porém, é direcionar essa procura por discos e CDs a shows ao vivo, quando o mundo retornar à normalidade após a covid-19. É o que preocupa Leo Bigode, da Monstro Discos: “A gente vinha, falando da cena de rock da cidade de Goiânia, num crescimento, de uma retomada”. Em 2018 e 2019, o selo goiano – que estava à frente de projetos semanais no Martim Cererê – movimentou a cena roqueira goianiense com intensidade, e essa procura do público acabou quebrada pela pandemia.
“Na minha análise, eu acho que esse é o desafio também, que essa cena volte a crescer, a ser consumida, a ser produzida”, analisa. Enquanto isso não acontece, o mercado de música física e digital deve se manter forte: graças à música alimentamos nossa nostalgia sobre um tempo em que poderíamos conversar, se divertir, aglomerar nos festivais que rolaram na capital e em outros espalhados pelo país. O som certo faz uma alma embriagar-se nos bons momentos da existência.